O longo debate sobre se “a Strade Bianche é ou não uma Monumento” não tem lugar aqui. Esta não é uma questão aberta a discussão. O Ciclismo tem suas tradições, dogmas e tudo bem. O próprio status de “Monumento” é algo não-oficial. É um lugar especial nos corações e mentes de jornalistas, atletas e fãs. Uma convenção social, um pacto não escrito. Daquelas provas que, entre as demais, se destacam em Histórias, características únicas, dificuldade e vitórias memoráveis. E isso, a Strade Bianche tem de sobra. Fato é que esta corrida é uma jóia por si só. É uma maravilha moderna em um esporte centenário. Atrai atenção e devoção na velocidade de um pelotão furioso atravessando uma descida no sterrato. Coleciona edições memoráveis, cada uma a seu próprio estilo. Entre atletas é unanimidade: é uma das corridas mais difíceis do calendário. Entre fãs e jornalistas também: é imperdível.
A origem e a galeria de grandes campeões
Já não é segredo para muitos que a corrida nasceu de um gran fondo, a Eróica, um evento que simulava a experiência de cruzar as estradas da Toscana com bikes e equipamentos antigos. Uma espécie de tributo aos heróis do passado, das grandes disputas nos tempos iniciais de Giro e Tour. Ali estavam as sementes do que tornou-se a corrida: um percurso desafiador com equipamentos que não eram necessariamente os mais apropriados para tal. E não é qualquer um que pode vencê-la. É necessário ser um ciclista completo e com qualidades incontestáveis. Prova disso é ver que temos desde classicômanos a escaladores no pódio desta corrida. Vários campeões e atletas que estiveram no pódio da Strade tornaram-se Campeões Mundiais ou foram pódio em grandes voltas. A lista é enorme: Fabian Cancellara, Kwiatkowski, Philippe Gilbert, Annemiek Van Vleuten, Lizzie Deignan, Van der Breggen, Alaphilippe, Van Aert, Van der Poel, Bernal, Peter Sagan, Romain Bardet, Alejandro Valverde, Pogačar…
Um raio-x do pelotão e um show de entretenimento
Qualquer ciclista que se destaque nas colinas da Toscana é alguém a ser observado. Isto só reforça o status de grande evento que a corrida possui. Com seus 180 quilômetros, sendo 1/3 deles em estradas de terra ou cascalho, a Strade Bianche é um desafio enorme. Some a isso subidas duras, descidas perigosas e trechos técnicos. Como se não bastasse, temos ainda um belo cenário e uma chegada que é quase uma arena perfeita. A Via Santa Caterina é uma dura subida de paralelos em uma rua estreita antes da chegada na Piazza del Campo. É como uma escadaria para o céu depois de cruzar os círculos do inferno. Já foi palco de tremendas batalhas e sempre será símbolo dessa corrida. É tão parte do DNA da Strade Bianche quanto o velódromo é para Roubaix. É o corredor onde os fãs saúdam o Rei ou Rainha da ocasião. E também onde os atletas tem a sensação de missão cumprida, subir aos céus e depois descer, em triunfo, na Piazza del Campo.
Outro fator muito importante para o valor desta corrida é que a Strade é uma das corridas com mais equilíbrio entre a versão masculina e feminina. São apenas 50 kms de diferença entre as duas competições e a Strade Bianche Donne é vanguarda no pelotão feminino. A sua versão feminina é realizada desde 2015, quase tanto tempo quanto a versão masculina, corridas mais tradicionais não acompanham a marcha da História, como a Roubaix, que só teve a primeira edição feminina em 2021. Ou a Milan-Sanremo que até hoje não tem prova para o WWT. E em diversos casos, são versões tão light das provas masculinas, que a diferença de quilometragem chega a ser de mais de 100 quilômetros. Mais um motivo pra este evento ser reconhecido.
Terra de grandes campeões
As estradas da Toscana, além de consagrar novos e grandes nomes na História do Ciclismo, já foram palco para o treinamento e desenvolvimento de um dos maiores ídolos da história do Ciclismo e da humanidade: Gino Bartali. O Italiano Campeão de Giro e Tour que usou do seus status como ciclista profissional para se opor ao regime fascista de Benito Mussolini e ajudou a salvar as vidas de centenas de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Um nome que talvez não tenha nada diretamente relacionado à corrida em si, mas que merece um evento deste porte na sua terra natal. Se falta à Strade Bianche Campeões como Binda, Merckx, Hinaulti, Coppi e outros, suas estradas estão cheias de história, da mais digna e célebre possível.
Influência, legado e o que o Ciclismo tem de melhor
Para terminar, nada como reavaliar o impacto que a corrida causou no mundo do Ciclismo. Da segunda metade da década de 2010 em diante, os trechos de sterrato se tornaram cada vez mais frequentes nas corridas e marcaram etapas épicas nas corridas de um dia e grandes voltas. Como esquecer da etapa do Colle delle Finestre onde Chris Froome atacou e mesmo começando o dia com uma diferença de 5 minutos para o líder, terminou vencendo a etapa e vestindo a Camisa Rosa no Giro 2018? Ou a etapa de Montalcino no Giro 2021 onde Mauro Schmid venceu e Egan Bernal abriu larga vantagem de Remco Evenepoel?
Até mesmo no Tour de France, a aparição do gravel ou sterrato tem tornado-se cada vez mais constante, como a já conhecida “Super” Planche des Belles Filles que incluiu um quilômetro de sterrato no fim da tradicional montanha. Além disso, até uma versão espanhola da corrida nasceu em 2022, a Clásica Jaén Paraiso Interior. Tal qual a Tro-Bro Leon está para Paris-Roubaix e Flecha-Wallone para Liege-Bastogne-Liege, a Strade Bianche já tem uma irmã mais nova, tamanho seu sucesso.
Portanto, se esta corrida não é um Monumento ou se não teve Campeões de antigamente no seu pódio, azar das Monumentos e dos gigantes do passado. A Strade Bianche é o que o Ciclismo tem de melhor e é uma carta de amor ao esporte, com um percurso explosivo, desafiador, grandes campeões, uma chegada mitológica e o equilíbrio exemplar das edições masculina e feminina. Marca os corações e a mente de quem assiste e quem a disputa. O esporte merece a Strade Bianche e ela merece o Olimpo do Ciclismo.
Fotos: LaPresse