Será que é enxugar gelo lutar por menos mortes no trânsito no Brasil? Será que é utopia pensar que um dia teremos algum lugar onde possamos andar com segurança? A pé? Na nossa bike? Com nossos filhos? Um lugar planejado com infraestrutura pensada a longo prazo? Pensando na integração da cidade? Em todos os níveis? Eu sei…as vezes parece mesmo ilusão. Nunca vai acontecer, não é? Pelo menos não nessa vida. Vão colocar uma ciclovia aqui ou ali, só naquele bairro de bacana, ligando o nada a lugar nenhum.
Vão fazer tudo meio mal ajambrado, como sempre fazem, pra durar 4 anos no máximo. Nas coxas, mas vendido como um grande projeto da prefeitura. A obra vai ser superfaturada, com material de quinta e entregue com atraso e incompleta. Quem se importa?

Ninguém vai gritar? Vai virar piada, meme, parar na internet? Vão dizer que é coisa de comunista? Vai pra Cuba! Que mané, ciclovia?! Preciso de espaço para passar com a minha SUV! Vruumm… “Ops! Acho que bati em alguma coisa. Ah, não foi nada, foi só uma bicicleta (nunca um ciclista!). O que ela estava fazendo na rua essa hora? Tem mais é que morrer mesmo! Quer andar de bicicleta vai andar no parque, porra! Hahaha! Quinto andar, por favor.”

Nojo.

Justiça por Marina

A morte da cientista social e cicloativista Marina Harkot (28), não foi a primeira e infelizmente não será a última ciclista atropelada de maneira bárbara e sem prestação de socorro a ocorrer no Brasil. No último domingo (8), Marina se foi. O motorista fugiu, mentiu, riu, se apresentou 3 dias depois, prestou depoimento e foi solto por conta de uma lei bizarra do tempo da ditadura, que diz que nenhuma pessoa pode ser presa cinco dias antes e dois dias depois das eleições, que ocorre neste domingo (15). A prisão só é permitida em casos de flagrantes.

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Lamento todas as mortes de ciclistas, sempre desce esquisito, mas confesso que esta doeu um pouco mais. Nunca a conheci, nunca tinha nem ouvido falar de Marina. Não a seguia nas redes sociais e desconhecia o seu trabalho e dedicação profunda e apaixonada pelo desenvolvimento urbano e as bicicletas através de um olhar feminino sobre a mobilidade. E chorei.

Chorei lendo sua tese de mestrado, dedicada ao seu avô: “para quem nunca houve coisas de menina e coisas de menino”. Chorei pela tragédia, mas senti um tanto quanto reconfortado por ela ter deixado um pouco do seu conhecimento. O seu exemplo e legado. Sua lembrança de luta por uma cidade mais humana. Mas claro, ela vai fazer muita falta.

Com Marina, descobri que existe uma Escola de Ativismo em São Paulo, que existe um simpósio internacional para discutir ciclismo e sociedade e ainda um escritório de arquitetura dedicado a desenvolver planos e políticas públicas para a redução das desigualdades sociais e ampliação do acesso aos direitos básicos do cidadão. Veja a que ponto chegamos? Estamos defendendo o básico. E essas são apenas algumas das pessoas e assuntos que a cercavam e que mostram o quanto o tema dominava o seu mundo de interesses coletivos.

Foto: Arquivo pessoal
Leticia Lemos e Marina (Foto: Arquivo pessoal)

Com o título: ‘A bicicleta e as mulheres: Mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo’, sua tese de 2018 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) é dividida em 4 capítulos: As mulheres e a cidade; Mobilidade por bicicleta em São Paulo; Quem são e como pedalam as mulheres em São Paulo e Desafios ao uso da bicicleta pela mulheres em São Paulo.

Fica evidente que esse recorte de discutir a interseção entre gênero e o uso da bicicleta na cidade, quer repensar e construir uma nova forma de ver e planejar a cidade. Que deve oferecer a seus moradores, qualidade de vida, transporte adequado e segurança. Segurança não está ligada a armas, mas a soluções inteligentes e pensadas para preservar a vida dos seus cidadãos e isso passa por ciclovias, sinalização, ordenamento e planejamento urbano e modelos viários que devem ser adotados de maneira igualitária e clara por toda cidade.

Berlim x São Paulo

Morando em Berlim e já tendo pedalado em São Paulo, é muito fácil perceber obviamente a grande diferença no modelo de desenvolvimento entre as duas cidades. Berlim é também uma cidade muito menor que a capital paulista  (3.6 milhões x 12 milhões de pessoas), mas o seu planejamento viário e equilíbrio entre carros x pessoas x bicicletas a transforma sem dúvida em uma das melhores cidades que já pedalei. Não há diferença no número de ciclistas homens e mulheres. A cidade é igual e segura para todos. Inclusive para se pedalar com crianças. Em cadeirinhas ou livres nas suas próprias mini-bikes.

A cidade faz menos barulho porque tudo parece funcionar bem como um relógio. O ônibus pára sempre no ponto, chega sempre no mesmo intervalo. O trem saí sempre na hora, as pessoas atravessam na faixa, o carro e até o ciclista param no sinal! Tá de bike e vai virar a esquerda? Sinalize estendendo o braço. Todos fazem, todos ganham. A violência é baixa porque tem equilíbrio, respeito, infraestrutura e planejamento urbano. E que não muda de 4 em 4 anos porque a oposição foi eleita. Tem sinalização e as pessoas claro, respeitam. Mas não tá vindo carro nenhum? Espere o sinal abrir para você. Em ruas com escola o limite é de 30km/h e quem vem da direita tem sempre a preferência. Simples assim. Será que é tão difícil pra gente? O que é preciso fazer para mudar? Mais jovens como a Marina morrer? Até quando?

Assista ‘O legado de Marina Harkot’ do canal Bike é Legal, da Renata Falzoni.

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