Fim de tarde e um casal atravessa fora da faixa. Zufpt! Como uma flecha um ciclista fura o sinal e tira um fino que quase arranca-lhes a alma. ‘Sinal fechado, FDP!’, esbravejou o senhor ainda se recuperando do susto. ‘VTNC! Nunca vi sinal para bicicleta, caralho!’, resignificou o ciclista saindo em gargalhada e descaralhado rua abaixo. Incrédulo, grito da calçada: ‘Capacete, Palhaaaço!’ Foi mais forte do que eu. Desculpe, mas não consegui segurar. Gritei aquilo sem qualquer noção, mas num estalar de dedos o ‘Palhaço’ brotou do meu lado e para o meu próprio susto ameaçou: ‘Quié qui cê falou?!’. De sopetão retruquei: ‘Pra você usar capacete se você quer ser esse babaca para andar desse jeito!’ Ele grunhiu alguma coisa e saiu rangendo os dentes.

Subi a calçada todo cagado, mas orgulhoso.

Em outra esquina, ciclistas esperam em fila o sinal abrir. Um atrás do outro. Um estica o braço indicando que vai virar a esquerda. O motorista espera ele cruzar. Faixas, pisos diferentes, pitocos, respeito e um fluxo de pessoas que parecem circular por veias e artérias de um grande sistema de cidade cardiovascular. Bombeada de maneira ordenada e sem barulho, as pessoas vêm e vão tranquilas. O objetivo principal de todos: preservar a vida. De frente a escola, 30km. Pardal? Tem e é ilustrado com um rosto de criança. Nunca vi ninguém passar do limite.  Mas se você empacar a circulação, vai receber uma bela de uma chamada. Grossa. Forte. Em alemão.

Estes são dois exemplos simples do dia-a-dia de cidades tão distantes como são Rio e Berlim. Onde parece existir uma diferença imensa do significado do sinal vermelho. No Rio parece ser só uma sugestão. Em Berlim, a regra é clara, diria o Arnaldo. Mas a sinalização também é clara. As faixas estão todas lá. Foi tudo pensado, discutido, definido. Seguem regras. Não desse governo, mas de todos em sequência. Com dados e estudos acumulados do conhecimento de tráfego e integração de como fazer melhor. Documentar. Repetir. Melhorar. Sempre.

Andar de bike em Berlim é sem dúvida uma das melhores experiências ciclísticas em city bike que já vivi. A balança entre a quantidade de carros e bikes é perfeito. Diferente de Amsterdam onde as bikes dominam, em Berlim a cidade tem um excelente equilíbrio entre todos estes modais, o que permite uma harmonia melhor entre eles.

Números de Berlim

Em Berlim, os ciclistas têm acesso a 620 km de ciclovias incluindo cerca de 150 km de ciclovias obrigatórias, 190 km de ciclovias off-road, 60 km de ciclovias em estradas, 70 km de faixas de ônibus compartilhadas que também são abertas a ciclistas, 100 km de ciclovias e pedestres combinados e 50 km de ciclovias marcadas nas calçadas. Um verdadeiro paraíso ciclístico, se você não sentir muita falta das montanhas.

Recentemente um estudo feito pela consultoria
FixmyBerlin enumerou 50 das 3.000 situações das ciclovias da cidade com uma avaliação onde a porcentagem indica a proporção do sentimento de segurança dos ciclistas entre “seguro” ou “bastante seguro” e assim possa servir de referência para a implementação de novos trechos ou melhorias da trama atual.

Berlim possui ainda 979 pontes que cruzam 197 quilômetros de vias navegáveis da cidade e uma metrópole com uma das maiores taxas de deslocamento de bicicletas do mundo. Cerca de 1.500.000 viagens diárias representam 13% do tráfego total em 2010. O Senado de Berlim pretendia aumentar esse número para 18% do tráfego de bicicletas na cidade até 2025, mas parece que esse patamar foi alcançado ainda em 2018, segundo este levantamento.

Tráfego total da população residente – Berlim 2018

Fonte: Senado de Berlim https://www.berlin.de/sen/uvk/verkehr/verkehrsdaten/zahlen-und-fakten/mobilitaet-in-staedten-srv-2018/

Em 2018/2019, Berlim participou da “Mobility in Cities – SrV” pela terceira vez, um evento e estudo realizado pela Universidade Técnica de Dresden que conduziu uma pesquisa domiciliar sobre o comportamento do tráfego da população residente. Berlim continua sendo uma das mais de 100 cidades e municípios alemães em que o tráfego foi examinado usando o mesmo método e em um período idêntico e mais de 40.000 berlinenses participaram.

Não é só educação

Os ciclistas têm prioridade no trânsito alemão, mas têm que respeitar uma série de regras. Se um ciclista atravessar no vermelho e causar perigo iminente a multa pode chegar a 100 euros. E ele ainda perde pontos na carteira de motorista. Pedalar com a luz apagada durante a noite também é proibido. E eu mesmo já fui multado em 10 Euros por andar na calçada.

Portanto percebo que não é apenas questão de educação, mas também infraestrutura viária planejada e desenvolvida ao longo de anos que permite que a cidade, ou melhor que as pessoas, possam se movimentar para qualquer lugar que desejem de maneira fácil, simples, barata, rápida e em segurança. Até mesmo para além das fronteiras da cidade. Tudo é interligado, funciona e há sempre um caminho seguro para seguir.

Chego a conclusão que Alemão na real não sabe o que é perrengue. Hoje.

Fotos: Junimba Simões

Recomendo a reportagem da coluna Mobilidade do Jornal do Comércio de Recife, escrita pela Roberta Soares sobre os desafios da integração urgente dos modais de transporte no Brasil.

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