“O Ciclismo é um esporte individual disputado em equipes”. Esta é uma máxima que resume quase tudo que se precisa saber sobre o Ciclismo, sobretudo o de Grandes Voltas. Não se vence corridas sozinho, é necessário ter todo um entorno dedicado a isto. Por quê? Bom, por diversos fatores, incluindo táticas, defesa, ataque, suporte mecânico e sobretudo apoio moral e mental. Começaremos pelo contexto prévio, o que trouxe Jai Hindley de bagagem e experiência anterior.

Na sua quarta participação no Giro, enfim o caneco para o Australiano Jai Hindley

Esta foi a quarta participação dele em um Giro e quinta em uma grande volta. A Vuelta 2018 foi a estréia de Hindley em grandes voltas e sem muito destaque, fez um 9º lugar na etapa que terminava em Balcón de Bizkaia, uma dura subida com 7,2 kms a 9,8% de inclinação. Uma indicação de que aquele jovem de 22 anos à época, era um bom escalador. No Giro 2019, uma boa participação, mas sem tanto destaque. Até o Giro 2020. Aí a história começou a mudar. Hindley começou como um gregário de Wilco Kelderman e revelou-se um talento para a Classificação Geral. Naquele ano, o Australiano vestiu a camisa Rosa na etapa 20 (em uma controvérsia com Kelderman e a equipe sobre papéis de líder e gregário) e perdeu no dia seguinte, para Tao Geoghegan Hart na disputa do contrarrelógio final. Uma derrota dura para Hindley que teve o gosto de sonhar com o título até os últimos segundos, literalmente.

Jai Hindley ainda na Sunweb, vence a Etapa 18 no Giro 2020

Entretanto, olhando do alto do pódio do Giro, um 2º lugar aos 24 anos, com uma vitória de etapa e sem uma equipe dedicada à ele, o futuro só podia ser brilhante e bem-sucedido, certo? Bom, não tanto. O Giro 2020 foi afetado pela pandemia e acabou sendo realizado no fim do ano, o que não deixou margem para muitas outras experiências. Em 2021, uma temporada difícil foi marcada por lesões, quedas, doença e basicamente abandono em quase todas as voltas que correu, inclusive o Giro, que teve de abandonar na 14ª etapa. A equipe Sunweb virou DSM, mas seguiam relatos de um ambiente pesado, de cobranças e desrespeito aos atletas. Some a isso a expectativa de repetir um resultado digno de um vice-campeão de Giro e a vida do Australiano não ficou nada fácil.

Jai Hindley no Team DSM em 2021

Enquanto o ano de 2021 era um inferno astral para Hindley, a Bora-Hansgrohe fechava um ciclo com a despedida de Peter Sagan. O tricampeão mundial iria para a Total-Energies e o time alemão buscava renovar-se. Com a contratação de Kelderman conquistaram um 5º lugar na Classificação Geral do Tour 2021 e Felix Großschartner foi 10º na Vuelta. Era nítido que a Bora queria disputar Grandes Voltas com chances de pódio ou título. Com a saída de Sagan, tiveram muito orçamento à disposição e contrataram, entre outros nomes, Jai Hindley, Aleksandr Vlasov e Sergio Higuita para 2022. Três bons ciclistas que aspiravam sucesso nas corridas de três semanas. E começaram, segundo o próprio Hindley, a trabalhar ainda em novembro do ano anterior para o Giro 2022.

VINI, VIDI, VINCI

Em uma equipe com diversos líderes, a pressão por vitórias inevitavelmente acaba sendo dividida e há um ambiente mais favorável quando a fase é boa. Ao contrário da necessidade de resultados, como na DSM em 2021, na Bora, Hindley tinha liberdade para encontrar sua melhor forma e preparar-se com calma para o Giro. Resultados interessantes com destaque para um 5º lugar na Tirreno-Adriático, precederam a grande volta italiana, mas nada que o credenciasse como grande favorito. No máximo, um gregário de luxo para Wilco Kelderman e talvez tivesse a liberdade de caçar etapas. Os rivais eram nomes consagrados: Richard Carapaz (Ineos), Simon Yates (BikeExchange), Romain Bardet (DSM), João Almeida (UAE), Mikel Landa (Bahrain), Miguel Angel Lopez (Astana) e entre outros. Portanto, era difícil para Hindley candidatar-se a isso desde o começo, havia muita competição e era necessário identificar quem seria o principal rival.

A Bora era apontada como uma das equipes mais fortes, mas sem um líder de peso. Kelderman e mesmo Hindley não inspiravam confiança e o ciclista que mais se destacou da equipe antes do Giro, Aleksandr Vlasov, não foi escalado para estar na Itália. Nas primeiras etapas, Jai andou próximo e esteve a poucos segundos de Carapaz. Lennard Kämna venceu no topo do Etna e já acumulou uma vitória para a equipe, tirando o peso dos ombros de todos e criando um ambiente positivo. A Bora estava no caminho certo.

Na etapa 9, no entanto, no primeiro grande teste em montanha, tudo esteve a ponto de desandar. Kelderman caiu na descida do Passo Lanciano e depois de ter perseguido o grupo, sofreu na subida ao Blockhaus. Emanuel Buchmann outro possível líder da Bora, João Almeida e Hindley também passaram dificuldades na subida ao Blockhaus, enquanto três líderes se separaram do resto dos rivais: Carapaz, Mikel Landa e Romain Bardet. Na frente, os três revezavam ataques, mas não conseguiam largar os rivais. Hindley foi o primeiro a perseguir e logo após, João Almeida seguiu e os dois perseguiram com uma passada constante liderada pelo Português. Os dois se juntaram ao grupo da frente perto do topo, quando os três líderes diminuíram o ritmo e Hindley bateu a chegada, vencendo a etapa e ganhando 10 segundos de bônus, diminuindo em 4″ a vantagem de Carapaz, que chegou em segundo. Ali, Hindley começou a mostrar que estava com possibilidades de igualar-se aos favoritos deste Giro.

A disputa com Carapaz se intensifica a partir da Etapa 9

Na etapa seguinte, em Pesi, quando Biniam Girmay (Intermarché) venceu Mathieu Van der Poel (Alpecin) ao sprint, os líderes da Classificação Geral tiveram um embate entre si, com Richard Carapaz (Ineos) atacando, mas a Bora e a Bahrain tinham pelo menos três ciclistas cada, enquanto que o corredor da Ineos estava sozinho e assim, logo, junto à Intermarché de Girmay, neutralizaram o ataque do Equatoriano.

Esta foi uma das primeiras vezes em que vimos Richard Carapaz isolado enquanto as outras equipes tinham ciclistas à disposição de seus líderes. Uma tônica que se repetiria adiante. O papel da equipe é fundamental neste tipo de corrida. Uma analogia, que talvez explique um pouco isso, é dizer que a equipe é como a armadura do ciclista. Cada gregário que o acompanha compõe um elemento de defesa. Quando os rivais atacam, os gregários vão à frente, aumentando o ritmo para que o líder se desgaste menos, enquanto o rival gasta mais energia para tentar escapar. Quanto menos gregários, mais exposto está o ciclista. Também servem como margem de segurança, caso o líder tenha um problema mecânico ou furo de pneu, podem trocar de roda muito mais rápido do que esperar o carro de equipe ou até trocar de bike e rebocar o líder de volta até o pelotão.

E além da função defensiva, a equipe também pode servir como ataque. Como um espremedor para peneirar o grupo e eliminar os gregários das equipes rivais ou até mesmo os líderes. Foi exatamente o que a Bora fez em Turim, na etapa 14. Um circuito final com passagens na dura subida de Superga e o Colle della Maddalena. A Bora transformou a corrida, desde o início, em um inferno para todos. Fazendo Juan Pedro Lopez da Trek (líder da prova no momento), João Almeida e outros ficarem para trás. Wilco Kelderman fez a maior parte do trabalho de seleção do grupo e, já nos quilômetros finais, Buchmann também lançou um ataque para descolar-se e fazer os rivais perseguirem. Carapaz, que novamente estava sozinho, enquanto via inúmeros gregários com os rivais, decidiu contra-atacar para não ser pego de guarda baixa. O Equatoriano logo abriu 30 segundos de vantagem, mas contra tantos rivais e restando ainda 30 quilômetros até o fim, ele começou a hesitar. Mikel Landa ficou para trás e Pello Bilbao o ajudou. Aí está um problema que a equipe não pode mudar, mas pode diminuir: não adianta usar armadura se você estiver asfixiando. Mesmo acompanhado, Landa não teve pernas para seguir naquele momento e só mesmo o colega de equipe estando junto, o ajudou a acalmar, respirar fundo e evitar que o prejuízo fosse maior.

Carapaz se viu sozinho sem gregários em várias etapas deste Giro

Hindley, Nibali e depois Simon Yates começaram a perseguir o Equatoriano da Ineos. Carapaz percebeu que os rivais se aproximavam e parou de tentar seguir solo, de repente numa tentativa de usar os adversários a seu favor, para abrir mais tempo de outros rivais, como Almeida e Landa. Yates acabou vencendo a etapa e Hindley bateu outra vez Carapaz no sprint. Menos 2 segundos de diferença entre os dois e diversos rivais distanciados na Classificação Geral. Hindley agora era 2º colocado a apenas 7 segundos da Camisa Rosa. O principal rival agora era líder, mas junto ao trabalho da equipe, conseguiu distanciar todos os outros rivais na briga e tinha uma margem fina de distância da liderança. A segunda semana foi um sucesso para eles.

Admitindo o plano e, mesmo assim, executando-o

Aqui, abro um parenteses para a coletiva de imprensa do segundo dia de descanso. Hindley foi o único a falar da Bora e parecia totalmente descontraído. Entre outras coisas, falou como a terceira semana seria muito difícil e que a etapa 16 seria duríssima, com provavelmente muitos ciclistas perdendo tempo e que ele se sentia muito bem e tranquilo para isso. Já falava do contrarrelógio, de que ele tinha perdido muito tempo em 2019 e 2020 e treinou para não repetir. Quando perguntado sobre como seria tornar-se o primeiro Australiano campeão do Giro e o primeiro a conquistar uma grande volta desde Cadel Evans, ele riu e disse que seria incrível. Disse que era fã de Evans e poder repetir um feito parecido ao seu herói seria era fantástico. Também disse que a equipe estava há meses planejando o Giro, que sentia-se bem e que chegaram com o foco 100% em vencer a Classificação Geral e todos os colegas estavam comprometidos com isso, mas não só isso…

Após o final do Giro, Hindley revelou que estava há dois anos e meio sem voltar pra casa e ver a família devido às restrições australianas pós-início da pandemia de Covid-19 e que a equipe o informou de que estava levando seus pais e esposa para encontrá-lo na semana final. Ali, algo mudou de vez mentalmente para Jai.

No dia seguinte, na Etapa com chegada em Aprica, Jan Hirt (Intermarché) venceu escapado, seguido de Arensman (DSM). Restavam quatro segundos de bônus e os favoritos chegaram para disputar. Hindley venceu e diminuiu a margem de Carapaz para 3″. E isso não mudou mais por mais 3 etapas e algumas montanhas. A pouca diferença de tempo inibiu as equipes de perseguirem as fugas para neutralizar as bonificações de tempo ao fim das etapas. Isso dividiu a corrida em duas e a briga pela Classificação Geral foi basicamente uma repetição de vermos os três líderes isolados e correndo muito próximos com um sprint final. Na etapa 19, Richie Porte (Ineos) abandonou por doença. Vendo a oportunidade, a Bora acelerou desde longe, ainda na primeira montanha do dia e depois no Kolovrat um colosso no território Esloveno, que o Giro visitou brevemente, mas outra vez os líderes chegaram juntos e o pelotão desgastado.

A disputa de Hindley com Carapaz se intensifica

Tudo seria decidido nas montanhas do último dia ou na crono de Verona. A etapa 20 repetiu a situação de dividir a corrida em duas. Na fuga, porém, a Bora foi a única das três equipes de líderes que colocou um ciclista no grupo, que foi Lennard Kamna. Atrás, o pelotão deixava a fuga seguir e abrir vantagem. A Bahrain tomou a frente e começou a acelerar até reduzir bastante o grupo dos favoritos. Alessandro Covi (UAE) atacou e seguiu solo pra vencer a etapa na frente, mas atrás a batalha pelo título do Giro seguia indefinida. Na montanha final, o Passo Fedaia, tudo teria que ser decidido ou ficaria para o Contrarrelógio do dia seguinte.

A Ineos, mesmo desfalcada, era a equipe com mais gregários ao fim do dia e acelerou o suficiente para isolar os líderes e Sivakov lançou um ataque de Richard Carapaz que foi seguido apenas por Jai Hindley. Já nos 5 (duríssimos) quilômetros finais, os dois estavam sozinhos e não largavam um ao outro. Aí entra Lennard Kamna, que tinha ido à fuga mas esperou o líder Hindley e Carapaz chegarem para trabalhar. Kamna estabeleceu um ritmo duríssimo e Carapaz viu-se sozinho contra dois, incapaz de atacar e fazer diferença. O ritmo começou a ficar muito duro e finalmente, os dois líderes se separaram. Um metro, dois, cinco. O Camisa Rosa da corrida ficava para trás e uma nova Camisa esperava Jai Hindley no topo do mítico Passo Fedaia, apelidado (justamente) de “Assassino de Campeões”.

O ataque decisivo que definiu o Giro

Hindley olhou pra trás e simplesmente estava incrédulo. Carapaz perdia cada vez mais tempo e o Australiano finalmente inverteria o jogo do Giro 2020. Ele seguia solo, agora que Kamna já tinha feito seu trabalho. Nada seria decidido na Crono, ele vestiria a Camisa Rosa com a ajuda da equipe e não contra um companheiro de equipe. Era um final digno de filme, o que provavelmente deve ter passado na cabeça dele.

Ao fim do dia, Hindley terminou com 1m25s de vantagem para o ex-líder, Carapaz. Era mais que o suficiente para defender-se na crono. E assim foi. Em Verona, ele perdeu apenas 7 segundos e terminou o Giro com 1m18s de vantagem para o rival e pôde rever a família depois de mais de dois anos, mas agora com uma bela Camisa Rosa para uma ocasião tão especial. A Bora também conquistou a primeira vitória de Grandes Voltas e consagrou-se como uma nova equipe a ser considerada neste tipo de prova. Ambos, ciclista e equipe, subiram de patamar no pelotão World Tour e essa união promete ainda novos capítulos e vitórias. Renasce uma estrela, renasce uma equipe. Mais fortes que nunca.

Hindley com toda a equipe da Bora-hansgrohe

Fotos: Alpozzi/D’Alberto/Ferrari/Paolone/ LaPresse

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