Começo esse texto com uma confissão: quando comecei a acompanhar ciclismo, não gostava das etapas de contrarrelógio. Para quem não entende ou pouco conhece, correr contra o relógio consiste em todos os atletas largando um de cada vez e registrando a maior velocidade possível no mesmo percurso usando nada além das próprias forças, técnica e estratégia.

Obviamente este tipo de etapa não tem o atrativo da disputa nas montanhas com as sucessões de ataques ou das etapas de sprint e sua alucinante arrancada final com trens de embalada e velocistas surgindo como mísseis rumo à chegada.

Não, o individual time-trial (ITT) ou Contrarrelógio individual (CRI) é um jogo diferente. É uma fusão científica-artesanal onde o ciclista e sua equipe devem alinhar o máximo de conhecimento de física e biomecânica junto com o subjetivo conforto psicológico que é exclusivo a cada ciclista.

E claro, a força bruta também é necessária, pois mesmo em um percurso curto, é preciso dar tudo de si, caso queira vencer. Não bastasse cuidar da posição perfeita para ser o mais aerodinâmico possível, escolher a relação do tamanho de coroas e peões mais eficiente e a pressão de pneus correta, ainda é essencial saber quando fazer mais força e aproveitar cada centímetro de percurso da maneira mais vantajosa. Como já dizia um certo filósofo niteroiense: “potência sem controle não é nada”.

Em suma, este que vos fala aprendeu que correr contra o cronômetro é uma arte. E no fim de uma grande volta de três semanas, depois de mais de 3 mil quilômetros percorridos e milhares de metros escalados, cada pequeno detalhe faz diferença. Por isso, não existem muitos favoritos para um dia como foi hoje. 30 quilômetros planos, com grandes trechos de reta e poucos pontos de reaceleração. A prévia da etapa colocava como favoritos máximos principalmente três atletas: Wout Van Aert (Jumbo-Visma), Stefan Küng (Groupama-FDJ) e Tadej Pogačar (UAE).

Como é de praxe, os atletas largam na ordem inversa da posição na Classificação Geral, deixando os líderes por último. O primeiro a estabelecer um tempo forte foi Kasper Asgreen (Deceuninck-Quickstep). O dinamarquês também é um grande motor e roda sozinho como poucos. Tempo depois largou o Campeão Europeu Küng. O Suíço fez um tempo 10 segundos mais rápido que Asgreen na primeira parcial, tudo apontava para uma vitória dele, mas já na segunda parcial, a velocidade do ciclista da FDJ caiu e na chegada, fechou 17 segundos mais lento que o líder da prova.

Asgreen respirou aliviado e permaneceu na cadeira de líder. Bom, pelo menos até largar outra besta-fera do crono: Wout Van Aert. O ciclista da Jumbo-Visma começou o Tour recuperando-se de uma cirurgia no apêndice e não estava na melhor forma. Os planos de vestir a Camisa Amarela foram frustrados pelo arqui-rival Mathieu Van der Poel (Alpecin-Fenix). A rivalidade que nasceu nas categorias de base do ciclocross, transbordou para a elite do ciclismo de estrada e para a maior corrida do mundo. O rival abandonou após a primeira semana para focar na Olimpíada, Wout, no entanto, tem sua história particular com o Tour e, apesar de disputar também a Olimpíada, permaneceu na França para ajudar Vingegaard e buscar suas próprias vitórias. Na etapa com duas ascensões ao Ventoux, fez história e venceu, ostentando a camisa de campeão belga na chegada.

Hoje, novamente, atravessou o percurso como uma moto a 51 Km/h para estabelecer o melhor tempo em todos os trechos da etapa. Destronou Asgreen como o mais rápido do dia e pôde assistir, sentado na cadeira de líder, os ciclistas seguintes a largar.

A última ameaça era Tadej Pogačar, mas com a Classificação Geral definida, o líder das Camisas Amarela, Branca e de Montanha não tinha por que arriscar o bicampeonato do Tour e rodou tranquilo apenas o necessário para chegar em 8° e conquistar seu segundo título. Wout Van Aert pôde então, comemorar a segunda vitória neste Tour e a quinta da carreira na grande volta francesa. Amanhã, uma etapa de celebração e, provavelmente, uma etapa de sprint como é tradição. Certamente, Van Aert vai tentar frustrar os planos de Cavendish (Deceuninck-Quickstep) em conquistar a 35ª vitória. Se irá conseguir ou não, é outra história. Certo é que após este domingo, o próximo objetivo é a Olimpíada de Tóquio. Os rivais que se cuidem.

(Fotos: A.S.O.)

 

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