“Este cara aqui entendeu, ele está ficando puto. Raiva é bom. Raiva faz as coisas acontecerem”. Em “Deuses Americanos”, obra de Neil Gaiman, é assim que o Deus Anansi responde aos pedidos de ajuda feito por homens e mulheres que, sequestrados na África, eram levados para a escravidão na América. Como uma lição de que a revolta, ao invés da aceitação passiva, é um combustível para motivar ações e acelerar mudanças.

Ao cruzar a linha para a vitória na etapa 19 do Tour 2021 e fazer um gesto de silêncio para os críticos, Matej Mohorič (Bahrain-Victorious) deu um exemplo de como a raiva pode ser canalizada e gerar frutos. Hoje, por exemplo, rendeu-lhe a segunda vitória de etapa e uma resposta após a devassa que a polícia francesa fez no hotel da sua equipe, sob o pretexto de investigar denúncias de doping.

Antes da etapa 18, uma divisão especial da polícia francesa realizou uma operação e invadiu os quartos da Bahrain-Victorious e sem especificar a razão, revirou quartos e bagagens de ciclistas e membros da equipe, solicitou dados de treinamento, mexeu em telefones celulares e levou pertences para “análise”. Só depois do acontecido é que deram declarações à mídia que foi uma operação para “afastar suspeitas e decidir se seria aberta ou não uma investigação”

Ou seja, fizeram um jogo de cena sem nenhuma evidência concreta. Aí, o burburinho toma conta da mídia e a Bahrain, que já foi questionada após bom desempenho de atletas como Mark Padun e Sonny Colbrelli na Criterium du Dauphiné, começa a ter que lidar com comentários negativos em redes sociais e rebater acusações de doping.

Mohorič que venceu a etapa 7, a mais longa em 20 anos no Tour, declarou ontem que sentiu-se como “um criminoso, como se fosse um traficante de drogas”. Campeão Esloveno, ele também tem visto diversas insinuações sendo feitas a respeito de Tadej Pogačar (UAE) que é compatriota e amigo próximo de Matej. Certamente isso criou a tempestade perfeita para motivá-lo psicologicamente. Hoje, em outro dia longo (207 km), ele saiu na primeira fuga e atacou diversas vezes até conseguir rodar sozinho para vencer.

Em um esporte em que talvez seja um equilíbrio fino entre o físico e o mental, a motivação gera situações imprevisíveis. O ciclismo é um esporte que se disputa com a mente e o corpo, mas em um nível de esforço tão grande, que às vezes, quanto mais simples o foco, melhor.

Na fuga da fuga, sozinho, nos quilômetros finais, Mohorič disse que só pensava no que aconteceu e em como se sentiu. Apesar de entender que isso é necessário e que demonstra que o esporte é vigiado para ser mantido limpo, a sensação de ser tratado como um criminoso gerou-lhe revolta. Principalmente por que, até que se prove o contrário, ele é inocente.

Ao cruzar a linha, um gesto de silêncio. Silêncio para os críticos e aqueles que condenam Matej, Tadej, Padun, Mader e tantos outros. O ciclismo constantemente se depara com o próprio passado. Seja em reverência aos heróis de antigamente ou como consequência dos vilões que um dia aclamou. Mas a geração atual não tem culpa do passado e não pode correr com medo de levantar suspeitas. São atletas que performam e treinam de maneira diferenciada desde muito cedo. E isso se reflete nas conquistas e recordes batidos. É normal em qualquer modalidade do esporte, mas quando envolve bicicletas, parece que há um teto para o alto desempenho. Do contrário, vira suspeito.

Uma prova disso: A primeira coisa que foi dita após o gesto de Matej é que foi um gesto idêntico ao feito por Lance Armstrong 20 anos atrás. E qualquer um que conhece o esporte, sabe que isso não é nada positivo. Calado ou não, é algo que todo ciclista vai enfrentar, infelizmente. É uma marca que se estenderá ainda por muito tempo.

O que fazer? O mesmo que Mohoric: usar como motivação.

(Fotos: A.S.O.)

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