No fim da noite do primeiro dia, estava no hotel. Mas bem antes, ele já estava na minha cabeça. Um quarto quentinho, um banho. E quando o falta-pouco se repetia freneticamente num fôlego prendido de cruzamento na área, explodiu na trave um balde de água fria no meio da minha cara: mais terra.

Mas esse trecho não apareceu do nada, eu fui buscar. Aconteceu que eu deixei o mapa de lado e segui a estrada asfaltada. Subi uma parede de cobrinha até desconfiar. O perfil no computadorzinho não adiantou essa subida. Apostei no erro do Garmin e não no meu. Subi tudo, até poder por o pé no chão sem cair. Já era tarde, ouvi uma voz digitalizada dizendo com deboche: eu avisei. Desci de elevador com medo de encontrar o que só podia ser, porque eu não passei por nenhuma bifurcação e só segui a estrada. Justamente, o caminho não era na estrada. Era mais um trecho de terra. O hotel quentinho ficou mais longe.

Como numa descoberta, eu não estudei a rota, não sabia onde tinha terra, onde tinha cidade, subida ou parede. Me confundi nos significados de inesperado e desconhecido, e sem procurar no dicionário, me achei no meio de uma aventura rumo ao abismo. Mas e se soubesse que aquela terra estava ali, eu estaria lá? A ignorância controlada é uma sabedoria. Liguei a luz no mais forte para iluminar esse caminho.

Passei aquele trecho me distraindo com o nome da cidade que mais quis conhecer. Tiraria uma foto com um letreiro Eu-Coração-Igaratá. Chamava de Iguatemi, não, Iemanjá, não, quase. Lembrava de novo: Igaratá! Aí subia mais um morro e esquecia. Iguapé, Iguará, Guaratinguetá, não… Fim de outro morro, lembrei, Igaratá! Apagava e recomeçava. Outra subida. Iguararé… Igaratá!

Até que sem nenhuma placa que confirmasse o nome da cidade, muito menos coração, cheguei no hotel. O banho de água quente tão esperado, complicou. Ardeu tudo lá embaixo. 120 quilômetros pipocando num pneu fino foram absorvidos em algum lugar. O selim cortou meu amortecedor.

Prolonguei a noite na esperança da pomada fazer algum efeito. O que ela podia, naquele tempo, ela fez. Mas precisava de um tempinho maior para terminar o serviço, umas 20 horas a mais. Eu não tinha. Reiniciei sentando de ladinho. Enquanto asfalto, foi. Na terra, não foi. O desequilíbrio forçou o joelho e uma dor de segunda-feira passada reapareceu no esquerdo. Tirando o peso do maior ponto de apoio, joguei todo no braço. Minha escápula alada, que de anjo só tem a caída, começou a me torturar. Ela sempre dói, mas eu sempre posso sentar direito. Nessa situação desfavorável, a escápula se viu poderosa para me espezinhar, espetando o pescoço aos poucos, o tempo todo, numa tortura lenta de dar inveja à máquina da Colônia Penal. A cada tentativa de alongar o pescoço uma sessão de acupuntura a prego e martelo.

A brincadeira com o nome da cidade mudou e agora passei o tempo escolhendo combinações de coisas e maledicências. Estrada maldita. Escápula desgraçada. Subida abominável. Joelho infame. Bunda boba.

Parei prum café, pão de queijo e reflexão. A filosofia de padaria se sentiu em casa. Sou eu que estou desistindo ou são os problemas que me fazem desistir? Tenho escolha ou sou forçado a parar? Cabeça fraca ou corpo magoado? Se continuar, vou chegar? Dado esse sentimento de dor e inadequação, qual o entendimento para os próximos dias? Mais cedo ou mais tarde vai passar ou só vai piorar? Outro café.

Já desde que entrei na primeira terra depois que saí do hotel sabia do final. Estava só procurando alguma coisa para aprender, alguma lição para levar. Só achei pão de queijo.

Foto: Renan Bossi e Bikeman Ultra


Kleto Zan é engenheiro de software, ciclista e detesta fotografia, mas escreve como ninguém.

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