A 100 quilômetros de Aparecida do Norte, a repórter pergunta ao peregrino: “Mas você teve alguma preparação física?” O rapaz sem ar, sem cor e quase sem voz, responde enquanto a enfermeira mede sua pressão: “Estou com meu sapato novo de missa e tenho muita fé”.

É quase como vou fazer. Sem muito treino, mas com pneu novo de cascalho e muito pó. Não vou a uma igreja, como o rapaz, mas ainda mais perto do céu, a 4970 metros do nível do mar. Abra del Acay é um passo perto dos Andes, em Salta, na Argentina. As pessoas sobem de bicicleta e eu também vou tentar. Com um Panaracer Gavelking e frio no pé.

Cuesta de Lipán

A volta começa na cidade de Salta, vai até Purmamarca, de lá sobe Lipán, desce, vai uns 50 km, vira pra esquerda, mais uns 100 km até Santo Antonio de los Cobres, sobe Abra del Acay, desce até Cachi e daí é só descida, chegando de novo em Salta, depois de quase 650 km. É uma corrida auto-suficiente, dessas que se dorme onde quer, e se come como der. O que precisa tem que levar na bicicleta ou comprar no caminho.

Já fiz desse tipo, e até perto dessa distância, mas nunca na terra. Um terço do trajeto é de pedregulho, cascalho ou qualquer coisa diferente de asfalto. Existem bicicletas apropriadas para esse tipo de terreno. A minha bicicleta não é uma delas. Mas como a minha, todas tem duas rodas. Então, considerei minha Ridley de estrada, de quadro estreito, de duas rodas apta. O quadro é apertado, e o pneu mais largo que cabe nela é de 26mm, um pouco mais da metade do que me disseram pra usar.

A preparação dos equipamentos é como aquele bluetooth que não conecta. São horas procurando “saco de dormir leve” no Google. Lendo de reviews descompromissados de consumidores que gostaram da cor até especialistas de recomendação fazendo uma dissertação sobre o zíper de cada um dos 27 sacos de dormir leves que você pode encontrar por aí. Depois, precisa descobrir quais pode encontrar por aqui, e desses quais você pode pagar. Nem sempre o melhor zíper encaixa.

Salinas Grandes

O reconhecimento da rota pelo Google Maps é uma viagem. Daquelas que você se perde e tem que voltar 15 km para pegar o retorno. É um respiro fundo, um zoom a menos até se reachar. Pra muita gente essa tarefa é fácil, até prazerosa. Pra mim, que me perco depois de entrar numa loja ou virar numa esquina, é um exercício duro. Cada estrada que se cruza me confunde, cada trevo que se abre me engana. O perfil das subidas se mistura com os nomes das cidades. Tento decorar a quilometragem, mas esqueço dos pontos. Acabo guardando na memória que depois de uma cidade pequena, na forma de L, vai faltar 260 km. E tenho que acreditar que tenho um plano.

A última coisa é o tempo. Todo dia olhando na previsão esperando um milagre. Se ontem a previsão para o dia da corrida era de -9°C, hoje não vai ser 20, 21, como eu queria. Mas vai que foi Lorentz que copiou as condições iniciais e diverge. Tenho que acreditar. O saco de dormir, descobri, tem temperatura nominal de -5, o que quer dizer 10 de conforto, me ensinaram. Saco de dormir se mede assim, num intervalo de tá-bom até só-não-vai-morrer-mas-vai-ser-o-inferno. De resto, luva, roupa térmica e a esperança que o sol faça sua parte.

No domingo testei a montagem. Coloquei tudo na bolsa e fui pra lama. O pneu anda bem na lama, ainda não sei na areia. A bolsa grande no banco balança um pouco, mas equilibra fácil depois que acostuma.

Comprei outras pilhas de reserva e já carreguei o mapa. Agora é só rezar.

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