Tudo é uma questão da motivação certa, diz uma amiga que adora a desgraça alheia.

Há dois anos estava voltando a pedalar depois de meses longe da bicicleta cuidando de uma lesão no piriforme. Depois de meses longe da bicicleta o que você mais quer é ficar longe da bicicleta. Você se dá conta de algumas horas que antes pareciam escondidas e o dia passa a ter duas, três horas a mais e você pode ocupá-las todas dormindo tranquilamente.

Mas depois que a dor acabou, era hora de voltar para a labuta, porque como é na vida, na bicicleta você precisa continuar pedalando para manter o equilíbrio. Einstein disse o contrário porque trocou o referencial.

E eu voltei, voltei e voltei. Estive voltando por um tempo, mas num dia chovia, noutro dormia. Tinha vezes que só não queria, outros, combinava e não ia. Era muito cedo, ou já tinha ficado tarde. Queria ver a novela à noite, ou ler uma novela de manhã. Às vezes era fase de muito trabalho, outras de muita preguiça.

Não faltavam motivos para desmotivar. Acordava com o que achava ser vontade de pedalar, mas confundia as vontades, ia ao banheiro e passava.

Foi por aí, em algum lugar entre uma subida arrastada da Mesa do Imperador e uma volta sem vontade no Aterro do Flamengo que o Rodrigo Hilbert apareceu na minha vida.

Descobri que o cara pedalava e tinha Strava. Escolhi um segmento qualquer, vi o seu tempo e me embrenhei contra esse moinho. A partir daquela hora, eu tinha uma luta traçada, um desafio imposto, um bobagem imaginada. Ou, na nomenclatura esportiva atual emprestada dos palestrantes empresariais esportivos modernos, eu tinha uma meta, um objetivo. Só não tinha um plano.

O segmento poderia ter sido outro, mas foi o que chamamos de Bombeiro-Mesa, que liga o Alto da Boa Vista à Mesa do Imperador. É uma subida leve, de 4,5 km, com duas pequenas descidas e muitas curvas. A combinação dessas duas descidas, todas as 27 curvas e a pouca inclinação faz desse um percurso ideal para se ter a sensação de grande esforço, mesmo com baixa velocidade.

Foi na segunda parte desse trecho, depois da bifurcação da estrada que vem da Casa do Prefeito, onde mora o prefeito, que pedalei com o multi ganhador do Tour de France Chris Froome. Essa é uma história fantástica, senão fantasiosa, que ainda não me atrevi a contar para não parecer mentiroso. Também acho que ele não contou para ninguém.

Quando bem pedalado, chega-se do Bombeiro à Mesa em 11 minutos e alguma coisa. É um esforço intenso, mas curto.

Comecei, então, a baixar meu tempo, me aproximando do alvo. De vez em quando, lá ia eu de novo fazer força para ser mais rápido que o Hilbert, fingindo que isso importava. Estava cada vez mais perto. Nas madrugadas sonolentas do Aterro aquele minuto que ainda faltava gritava alto no meu ouvido. Nas subidas semanais da Vista Chinesa, os segundos de diferença me empurravam para cima.

Passavam-se umas semanas, ou meses talvez, e eu tentava de novo. Ganhava mais uns segundos no meu recorde pessoal, mas ainda atrás do global. O tempo passava e tive medo de não conseguir antes dele ir para a Record. Segui nessa empreitada e isso me motivou. Depois esqueci, mas continuei pedalando.

Foi só então que, finalmente, os astros se alinharam e o universo inteiro conspirou para que acontecesse. O Universo tinha muita coisa para resolver antes disso.

Estávamos no Vale Encantado e o Serginho deu uma ideia, como se fosse uma qualquer. O que acham de fazer Bombeiro-Mesa forte?!

Desculpa, Hilbert, mas seus dias acabaram.

Sem titubear, não só respondi que sim, claro, só se for agora, como aumentei a pilha. Danilo e Heleno pareceram meio relutantes, mas quando o Sérgio fizesse a primeira aceleração, como sempre faz, eles não se fariam de rogados.

Então foi isso, saí para esbagaçalhar o Hilbert, protegido por uma cavalaria de luxo. Era certo que eles seriam muito mais rápidos do que eu, mas eu só queria ser mais rápido do que ele. Se conseguisse ficar perto deles, um minuto só atrás deles, eu estaria na frente.

O virtual partner do Garmin, que é uma espécie de alucinógeno, me mostrava o Hilbert 1 segundo à frente. Mas ele estava acelerando e quando chegou a CEDAE, acelerou de verdade. A diferença aumentou para 4 segundos e pela tocada ele iria me deixar. Não, senhor! Não hoje. Aumentei a cadência até queimar e quando embalou, pesei a marcha e voltei a encostar.

Agora estava roda a roda, naquela posição incômoda, de disputa explícita de força. Ficamos assim por uns segundos, até o começo da última descida. Entrei primeiro na descida e pude controlar a velocidade sem muito risco.

Na saída da descida olhei para o alucinógeno e estava quase 10 segundos à frente. Aí acelerei! Forcei o pedal o que dava, entrei deitando na curva da chegada, e levantei para o sprint do quebra mola.

Último trago no alucinógeno e estava certo, não ia nem precisar de photo finish. Eu ganhei do Rodrigo Hilbert.

Fotos divulgação: Brasil Ride /Ney Evangelista/Marcelo Maragni/Rosita Belinky

 

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