Os últimos dois dias, os primeiros do Tour desse ano, foram de ataques. Cada um valendo a Camisa Amarela. Alaphilippe e Van der Poel atacaram cedo demais. Van der Poel tão cedo que foi uma volta antes. Alaphilippe tão cedo que nem acreditou.

O ataque é minha razão de assistir ao ciclismo. Não é o gol, mas o chute. Às vezes é o uhhh! Na trave! Às vezes é a bola na rede. Hoje o uhhh! foi com o Quintana. Por um instante, enquanto a bola voava pro gol, eu acreditei.

O ataque sem sentido do Ide Schelling, por um único ponto da camisa de bolinha, valeu uma corrida. Ou justificou as duas horas em frente a TV, ouvindo piadinhas dos narradores e apreciando a arte pós-moderna Bretanha no jogral dos tratores. Enquanto isso, acompanhava a cara de Trator do Declercq.

E Mathieu fez valer as outras duas horas, com dois ataques, no mesmo lugar, num circuito final pelo Mûr-de-Bretagne. Faltando 17km, um ataque incompreensível, um chute do meio de campo, deixou todo mundo sentado, assistindo ao espetáculo. Ele chegou ao topo sozinho e ninguém sabia se era uma fuga solo ou o quê. Para uma fuga solo não seria, porque ele esperou o pelotão. Então seria o quê?! Rodaram o circuito e lá chegaram de novo. Alpecin de novo atacando, será que é Van der Poel?! Não, era Xandro Meurisse levando na roda Formolo. Mas era só um teste, uma finta. Quando parou a bola, Formolo ficou no vácuo. Mas um ataque não pode acabar enquanto há pernas. Formolo tentou, sem ginga, mas sentiu, olhou pra trás e acabou. Porte vinha fazendo o jogo de anti-ataque da Ineos, elevando o ritmo e mantendo. Mas esse jogo que rendeu 6 Tours e muito desfãs está com os dias contados. Enquanto Van der Poel se posicionava, Quintana partiu, mas logo cedeu. Colbrelli, de cruzada, socou! Acertou de raspão Van der Poel, que quando se recuperou, olhou pra trás e chutou. O segundo ataque fulminante na mesma subida.

Ganhou a corrida, a Camisa Amarela, e explicou: tinha que atacar na primeira volta pra pegar os segundos de bônus, que era a única forma de vestir a Camisa Amarela. Chorou ao dedicar ao vovô Poulidor, que esteve oito vezes no pódio, mas nunca ganhou e nunca vestiu a Amarela. Eu chorei também.

Ontem não foi diferente. O ataque do Alaphilippe foi uma arte. A Quickstep armou um trem de puxada surpresa. Se por acaso ou de propósito, não quero saber. Enquanto Alaphilippe seguia atrás de Asgreen, com alguém da Trek entre os dois, Dreis Devenyns, parte lá de trás, pela direita, num corredor vazio. A locomotiva do meio do trem passou pelo Alaphilippe e deu aquela piscadela vem-comigo! Descarrilhou o trem da esquerda e embalou por 300 metros. E daí veio o ataque, direto do segundo vagão. Alaphilippe partiu forte enquanto Dreis travou o trem. Quando Wout van Aert ouviu o apito, já era tarde. Até a linha, uma longa viagem. Eu ouvi de dentro da cabeça do Alaphilippe: não dá, não dá. Ele balançava a cabeça, se negando. Mas um ataque só acaba com as pernas, e elas discordaram dele. Seguiu trocando marcha e mudando a cadência, de um jeito estranho, que nunca vi nele. Quando percebeu que dava, que ia ganhar, ainda balançava a cabeça, agora de alegria. Eu ouvia de dentro da cabeça dele: vai dar, não acredito, vai dar.

E com a Camisa Arco-íris, um dedão na boca e uma cara de pai babão, ganhou a Amarela, chorando. Eu chorei também.

Cada ataque é uma emoção.

(Foto: A.S.O.)


Kleto Zan é engenheiro de software, ciclista e detesta fotografia, mas escreve como ninguém.

Instagram