Buenos Aires é uma cidade plana, mais plana que uma milanesa. Perfeita para bicicleta, de passeio, de transporte, de andar. Além disso, é cheia de ciclovia. E quando não tem ciclovia, as bicicletas são aceitas no trânsito, junto com os carros. A rua não tem dono.

No domingo fomos de Palermo à Tigre. Por ser domingo e de manhã, poucos carros e calma de sobra. Rua tão vazia que deixamos a ciclovia do Hipódromo de lado e seguimos pela Avenida del Libertador, uma avenida larga, de umas 6 pistas de cada lado. Logo que fomos entrar na avenida, passou um grupo grande pedalando. O sinal fechou, perdemos o bonde, mas era a desculpa para acelerar: vamos alcançar! Mas logo passou outro, outro e outro. Domingo de manhã e pulam a missa para pedalar, apesar do papa portenho.

Para chegar em Tigre, é só pegar essa Avenida toda vida reto. Ou, num domingo de manhã, só seguir o fluxo de bicicletas. Logo, logo, vai ter saído da Buenos Aires, Capital Federal, e entrado em Buenos Aires, Província. Quando estiver numa via fechada aos carros aos domingos, já é San Isidro. Como a Paulista ou o Aterro, eles também tem uma área reservada ao lazer aos domingos, que, por isso, exclui carros.

A via fechada começa ainda antes, em Vicente López e continua até San Fernando. É estreita e arborizada. A quantidade de bicicletas impressiona. De todos os tipos, reguladas, desajeitadas, com alforjes, de corrida, com cestinha, de criança. Tendo rodas, ta valendo. Qualquer roda, até patins. Um pelotão de umas 30 pessoas de roller!

Ser plano ajuda. Pode pedalar devagar sem perder o equilíbrio, como numa subida. Além disso, a primavera pinta algumas árvores no caminho, que além de fresquinho, fica bonito. Sem som de carros, o cheiro dos assados sendo preparados pro almoço completam a experiência. A novidade, para mim, de pedalar sem sofrer, por lazer.

A Sabrina foi com a magrinha charmosa, novinha, toda ajustada, corrente limpa, pneu fino, pedal alinhado, tudo no lugar. E eu estava com uma praiana de segunda mão. Dessas que tem um protetor de corrente, fixado com rebite, que sempre quebra e fica tilintando num tempo próprio, fora de fase com a cadência. A praiana tem banco de sofá e guidão bonachão, no jeito de estufar a barriga com as mãos nas cadeiras.

A variedade de bicicletas deixa o caminho curto. Mountain bikes sem montanha, praianas sem praia, estradeiras com alforjes, urbanas, velhas de corrida, fixas, com marchas e com uma só. Nessa reta plana qualquer roda chega.

Museu de Art Tigre, antigo clube de esparcimiento

Chegamos lá rápido. Tigre é uma cidade do rio, do delta do Rio Paraná. Vários clubes de remo e um museu de arte, num prédio que já foi um clube de esparcimiento. Dá licença dum parênteses: apesar de entretenimiento ser a tradução, espairecer merecia seu próprio substantivo, espairecimento; espairecer não é se entreter, senão o contrário). Mas com o museu fechado, o gramado ao lado é o lugar de espairecimento, fazendo nada enquanto o rio passa. Gente com as costas na grama bicicletas de pedal pro ar.

Fizemos nada um pouco e voltamos. Errei uma quadra e fomos parar em Flandres, versão 1% de inclinação por 50 metros. Parada de lanche numa parada de trem. Limonada com hortelã e sanduíche com queijo, abacate e rúcula.

Ida e volta, foram 60 quilômetros.

O fluxo ainda era o mesmo. Na Avenida del Libertador, fiz a graça. Passou um montain bike sem montanha rápido e coloquei minha praiana na areia. Relação leve, coroa 34, com o bancão baixo de por o pé no chão, joelho quase pegando no guidão, liguei o ventilador. É seguro andar a 40km/h com essa lata batendo pela falta de rebite? Foi. Uma quadra depois alcancei o argentino, que ouviu a lataria e olhou para trás. No Rio, a expressão que ele fez a gente chama de “que porra é essa?!”, mas não sei como se diz em castelhano.

Passei o ciclista de sapatilha e fui embora pela Avenida del Libertador. Dançando pelas seis pistas para não parar nos sinais, segui girando a praiana bate-lata por umas quadras. Mas argentino é marrento! Daqui a pouco estava ali do meu lado, apontando a roda e bufando, nós dois.

Contente de ter tirado do sério o ciclista de sapatilha, dei uma risada para o lado, olhando para o portenho e que me ignorava. Dale!

Foto capa: Kleto Zan; Foto matéria: Martin Muelas, Unsplash


Kleto Zan é engenheiro de software, ciclista e detesta fotografia, mas escreve como ninguém.

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