Ele virou à esquerda, entrando no trecho de paralelepípedos da pracinha da esquina. Acelerou, tentando uma fuga. Eu estava colado e já de roda antes da próxima curva. Com a fuga neutralizada, entramos na Princesa Isabel, logo depois do túnel. Com muita habilidade e sem nenhuma cautela, se meteu entre os carros, furando o sinal. Virou mais uma vez, pegando a Ministro Viveiros de Castro. Dessa vez deu uma olhada pra trás, só pra ver o que não queria. Eu ainda estava na perseguição.

No meio da Viveiros de Castro, uma rua com começo e fim, eu deixei ele seguir. Já tinha espantado o entregador de água que gritava seu amor no prédio vizinho, me atormentando vinte vezes por dia.

A nossa corrida começou quando eu chegava em casa e finalmente pude ver o que ouvia. Era ele parado no canteiro da rua gritando algum nome na direção de alguma janela, como fazia algumas vezes por dia. Então era isso. Da minha janela ouvia todo dia o que não era o meu nome.

Me aproximei do adversário com respeito, mas sem medo. Comecei o alinhamento na linha de largada e puxei uma conversa qualquer, como em qualquer corrida: por que você não usa o interfone? Ele respondeu alguma coisa vaga, sem querer assuntar a escolha dos seus equipamentos. Fixei, então, o olhar no seu uniforme tentando descobrir o nome do seu patrocinador, do seu empregador. Ele logo percebeu e rapidamente se virou, percebendo que eu poderia colocar em risco sua carreira. Insisti no olhar e avancei alguns centímetros o pneu, colocando minha bicicleta um pouco à frente da dele. Foi aí que ele entendeu que eu só sairia dali quando ouvisse o tiro.

Montou na sua bicicleta, olhou de lado, e largou! Eu na minha bicicleta de buscar pão e ele na de entregar água.

Copacabana é o bairro com maior número de bicicleta de entregas. Remédio, pão, pizza, água, colchão, roupa passada, verdura, mercado e gelo. Gelo.

O sistema de marmitas na Índia usando bicicletas ficou famoso porque ninguém estudou o sistema de entrega de gelo com bicicletas no Rio de Janeiro. No verão do Rio de Janeiro. Gelo, quarenta graus, bicicleta. Eu não consigo manter duas garrafinhas geladas e eles entregam gelo de bicicleta, antes de derreter, a 40 graus. Entregar quentinha é moleza.

Descobri que meu adversário se valia da movimentação das suas entregas para a cada saída, dar um oizinho para sua amada. Mas ele não parecia ser seu amado. Quando parava no canteiro da rua, começava assobiando, quase discretamente. Depois de algumas tentativas, subia o tom do assobio, diminuía a pausa e aumentava o compasso. Numa crescente em dó-menor, abria o sustenido e cravava o adágio num grito: Mariiiilllllza!

No começo bastava uma única amostra para ela descer em busca do seu oizinho. Por um momento, um único, achei bonito a demonstração pública de afeto, pensando estar ouvindo uma serenata do último romântico. Mas as serenatas desafinadas de tom cordial logo passavam a ser raivosas. Ninguém, nem mesmo uma donzela tão cortejada, tem paciência para descer vinte vezes por dia um prédio para trocar um oizinho.

O grito sinfônico do último romântico sem celular se transformava numa ária completa, desenfreada, cantando incansavelmente o nome da sua exausta. Marilza, Mariilza, Mariiiiilllza, Mariiiiiiiiilllllllza! Nem mesmo Susanna foi tão aclamada por Fígaro.

Ele passava até meia hora gritando o nome dela. A rua inteira começou a gritar na janela contra ele. No começo eu gritava coisas de ordem prática: toca o interfone, seu burro! Depois, passei a gritar meus desejos: vai embora! Também tentei exprimir meus sentimentos mais primitivos, gritando grunhidos: aheui, outahaea! Por fim, assumi o conselheiro amoroso e gritei verdades: ela não te quer!

A primeira vez que gritei isso voltei pra dentro de casa sentido, quase torcendo pra Marilza aceitar novamente seu amor barulhento. Será que gritar isso para a rua toda era tão cruel quanto deixar ele gritando em vão para toda a rua? Não sei, mas o sentimento logo passou e assumi um postura tempestiva. Assim que ouvia o primeiro chamado, já respondia com a verdade de ontem: ela não te quer!

Ele silenciava e eu o imaginava baixando a cabeça, montando na bicicleta de três rodas, pedalando sem vontade e indo embora pelos paralelepípedos.


Kleto Zan é engenheiro de software, ciclista e detesta fotografia, mas escreve como ninguém.

Foto Capa: Contagem de Estabelecimentos Comerciais com Entregas por Bicicleta em Copacabana. Rio de Janeiro, Janeiro de 2011/ Site Transporte Ativo (ta.org.br) e Ravi Sharma (Unsplash) 

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