Podia fazer um relato de viagem, descrevendo todos os detalhes, cheio de horários, lugares e daís. Começava com “saímos às seis e trinta e oito da manhã do sábado, 17 de setembro, com as luzes ligadas e caramanholas abastecidas, da rua Santiago de Estero, de Salta; seguimos por doze quilômetros neutralizados passando por ruazinhas vazias e ciclovia paralela a uma via movimentada”. E seguia com “daí eu ataquei”.

Mas foram quatro dias ouvindo tantos relatos, tantos joelhos que doeram, tantas baterias que acabaram, frios que passaram, ventos que sopraram. Ouvi tantas histórias de desfortúnio e superação que me cansei. A minha própria já não me interessa, se diluiu entre histórias de marchas quebradas e lamentos de quilômetros com pés molhados. Até minha carona de 8 km na caçamba de uma 4×4, se fosse relato, eu não confessava. Mas vi tantas outras caçambas e caminhões agarrados que esses meus quilômetros nem me envergonhavam mais.

Curvas de Lipán

Meu olho inflamado, o hospital, o dia parado tratando com corticoide e antibiótico, tudo isso, nem vou contar. Nem vou falar de todas as minhas câmaras rasgadas nas batidas do cascalho pedregoso de Salinas Grandes a San Antonio de los Cobres. Não vou expor o estrago que um pneu fino num quadro rígido fez comigo. O borracheiro que me ajudou e a enfermeira que me tratou também vão ficar sem seus daís. A história da chapeira que me perguntava se eu não tinha medo de um leão me comer no deserto vai ficar incompleta, como o lomo completo que ela me vendeu pela metade, sem batata frita.

Também não vou ficar transcrevendo WhatsApp, registrando toda a conversa com o Danilo, que trocou Argentina por Paraguai e apostou no cavalo errado.

Da passagem pelo norte da Argentina, dentro da pré-cordilheira dos Andes, não vou descrever aquela geografia desértica, desverde e seca. Nem vou mapear o penúltimo trecho da Ruta 40, aquilo que resolveram chamar de estrada, mas é uma coisa. Cascalho e costela de vaca, ou ripio y serrucho. Noventa e dois quilômetros de nada, dos dois lados, sem viva alma, só cemitérios, uns pares, cruzes, aos montes, e uma igreja.

Salinas Grandes a San Antonio de los Cobres

Mas eu quero contar alguma coisa. Duas coisas, do inferno e do céu.

Primeiro, do calvário que foi a passagem pela Cuesta de Lipán. Senti ali, em cada um dos últimos 15 quilômetros, uma tristeza irremediável. Logo que não aguentava mais e comecei a empurrar, o portão do inferno se abria e o caminho tortuoso se alargava a cada passo, num ziguezague bêbado subido em direção ao abismo. Quilômetro por quilômetro, o tormento não acabava. Um pensamento novo, que nunca tive, martelado na cadência do taco no asfalto: nunca mais. Enquanto continuava naquele suplício, o alívio imaginário, inventado e cultivado pela fé falsa que aquele era o último quilômetro, cantava solene dentro da minha cabeça: nunca mais.

Apesar de nem sempre me divertir nas subidas, não me lembro de ter pensado alguma vez em explodir uma montanha. Comecei a pensar nos detalhes de como destruir Lipán. Aquele ódio ressentido, da humilhação silenciosa que a montanha me pregava, se transformou num mote terrorista. A pulsão de morte convertia no prazer de me ver sorridente sobre os destrosos de Lipán escangalhado.

Foram 30 km de distância com 1700 m de ganho de elevação, chegando a 3700 m sobre o nível do mar. Lipán, uma bruxa!

E a outra coisa que conto, a única que quero guardar, foi o paraíso. A subida ao ponto mais alto da Ruta 40, Abra el Acay. Depois de um dia tratando do olho, saí cedo, mas já claro, para tentar o monstro. Na areia do início, três tombos de maduro. A sapatilha com o taco deformado de caminhar travou no pedal ao mesmo tempo que roda fina de correr travou na areia. Chão, chão, chão. A dignidade já não tinha, me joguei gostoso no macio. A vista vai mudando, a estrada, empinando e o piso continua ruim. Acima de 4500 m me apunei. Só que em vez da dor de cabeça típica, cansaço e falta de ar, a altura me deu uma alegria boba. Do nada, percebi que faltavam só 500 m, uma Mesa do Imperador. Meu olho começou a aguar, a respiração começou a soluçar e sem nem ver já estava chorando. Uma felicidade vazia, cheia de blocos de neve e montanhas distantes. Uma vista linda.

Mas o pouco que falta nessa altura ainda é chão. Estava devagar, pedalando o tempo todo, sem empurrar e disposto. Como se Acay tivesse rebaixado a subida pra me esperar. O vento aumentando, o topo aparecendo e a certeza que agora estava ali. Já não era imaginação nem esperança. Não precisava mais fé nem reza, era só virar e lá estava a placa: 4895 metros. A foto clássica da bicicleta encostada, um pouco de vista, um pouco de frio.

Sem reza nem cruz, coloquei minha pedra na apacheta à Pachamama e agradeci à montanha.


Kleto Zan é engenheiro de software, ciclista e detesta fotografia, mas escreve como ninguém.

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