Arte original por Raquel Batista

Entre os meses de Setembro e Dezembro deste ano, o ITDP Brasil irá publicar uma série de reportagens sobre o impacto do racismo estrutural nos deslocamentos de pessoas pretas e pardas nas cidades brasileiras. As ações fazem parte do projeto A Cor da Mobilidade, que tem como objetivo dar visibilidade a como os sistemas de mobilidade urbana são impactados pelo racismo histórico e colaborar para que gestores públicos e organizações da sociedade civil reconheçam este problema estrutural. 

“Por que a mobilidade urbana precisa ser antirracista?” Esse questionamento foi tema de uma roda de conversa realizada no dia 13 de outubro pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), em parceria com a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e com o Pedal na Quebrada. Os participantes refletiram sobre as dificuldades e desigualdades que permeiam a experiência da população preta e parda com a mobilidade urbana. Nessa primeira roda de conversa, participaram os organizadores do livro Mobilidade Antirracista, Rafaela Albergaria e Paíque Santarém e a coordenadora de comunicação do ITDP, Mariana Brito que mediou a conversa. 

Foto: Junimba Simões, Metrô Rio 2018

A relação entre o racismo e a mobilidade urbana pode ser observada a partir de diferentes perspectivas. Na base desse problema está o estranhamento do racismo nas instituições, seu atravessamento na organização dos espaços, na hierarquização e diferenciação das pessoas e na formulação de políticas públicas.

Citando Frantz Fanon, Paíque explica que “o racismo é um sistema de diferenciação de pessoas, que só existe quando consegue em toda a sociedade, construir hierarquias e essas hierarquias interferirem em todas as instituições”. 

Ele continua desenvolvendo o argumento: “Para se reproduzir, essa estrutura atua em todas as instituições, em todos os espaços da sociedade, uma coisa que é secular, que se reproduz e que muda de forma. A principal característica do racismo, para mim, é a capacidade de transformação, de conseguir se adequar a diferentes sistemas sociais e conseguir se manter como estruturador. Então, se o racismo estrutura todas as instituições e se a mobilidade é uma instituição da nossa sociedade, então ele organiza ela, certo?”, questiona Paíque Santarém. 

Foto: Junimba Simões, Mêtro Rio 2018

Segundo avaliação do pesquisador, a mobilidade urbana não pode ser vista como uma ação socioespacial. Deve ser, pelo contrário, compreendida como um consequência da segregação social, agente ativo e construtor dessa política de afastamento da população negra e de baixa renda das regiões valorizadas. Distante dos centros, essa população está também, por consequência, afastada da infraestrutura e dos serviços públicos. Afastamento este que se torna cada vez maior na medida em que as cidades — seus serviços, oportunidades e infraestrutura, incluindo os modais de transporte —continuam a se desenvolver de forma desigual, concentrando investimentos e oportunidades em determinadas áreas e precarizando outras.

Esse descompasso que atravessa a existência e sobrevivência dos corpos negros vem de longe. “O navio negreiro é um primeiro espaço da mobilidade racista, mas ela tem um grande impulso no momento de nascimento e estruturação das cidades, quando se estruturam os bondes, os trens… Até os anos 1930, os bondes e os trens eram mecanismos, simultaneamente, de integração das cidades e de segregação da população negra, tanto por poder afastá-la mais para longe, como pelas tarifas que eram instituídas”, ilustra Paíque. No momento de estruturação das cidades, os ideais higienistas e eugenistas faziam parte do imaginário e da vivência daqueles que eram responsáveis pela formulação de políticas públicas e pela organização do espaço urbano.

Na visão de Paíque a mobilidade racista continua atuando para construir ferramentas de segregação que podem se apresentar de várias formas. Ele exemplifica: “Com a minha aparência ou os ataques que eu vou sofrer nas ruas; com o meu território sendo mais precarizado; com eu entrar no ônibus, ter menos renda e não ter acesso ao vale transporte; ou, com eu estando no ônibus e sofrendo baculejo; ou, estando no ônibus e as pessoas não sentarem ao meu lado; o ônibus não parando para mim; ou, o trem não chegando onde eu chego, ou quando ele chega, a infraestrutura dele é péssima, muito mais suscetível a acidentes… Então, todos os aspectos da mobilidade vão ter um vínculo com o racismo”, conclui Paíque Santarém. 

Na compreensão da pesquisadora Rafaela, o racismo opera por meio de uma política de interdição em contraponto a uma política de acesso, tomando como ponto de partida uma perspectiva eugenista de organização do espaço público. Ela argumenta: “Corpos brancos acessam as instituições a partir de um lugar de garantia. Corpos negros acessam as instituições e os espaços públicos a partir de um lugar de interdição. Quais são os corpos que vão acessar às cidades e os direitos? Quais são os corpos que vão acessar à cidade sob uma ótica de interdição, de controle e de extermínio?”

Ainda nesse tema, Rafaela também defende a construção de políticas afirmativas voltadas ao deslocamento, que tenham como base as experiências concretas. O abismo entre as políticas de mobilidade e as necessidades da população negra, segundo a pesquisadora, se apoiam em projetos intencionais de interdição e controle por um lado, mas também resultam da falta de materialidade dos problemas para aqueles que têm o poder de modificar esse cenário. Em outras palavras, a falta de vivência nos problemas de acesso por parte daqueles que controlam as políticas e os recursos acentua o abismo que exclui pessoas negras e de baixa renda da cidade.  

As várias intersecções entre raça, racismo e mobilidade serão abordadas ao longo de três encontros promovidos no mês de outubro pelo ITDP. A proposta é debater o tema a partir de pesquisadores e ativistas negros, que atuem na temática de transporte e acesso à cidade. 

Fonte: RioOnWatch
Foto ônibus: Honório on Unsplash


Adriano Mendes é cria da Maré, Gestor Público e Mestrando em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. É Educador Popular e Pesquisador de Cidades Inteligentes.

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