O Ciclismo Feminino de Estrada terminou 2021 em alta. Nunca se falou tanto nele. Até veículos que tradicionalmente o ignoravam, abriram espaço em suas grades para comentar as provas femininas.

Em 2021, tivemos a primeira edição da Paris-Roubaix Femmes, que foi um sucesso absoluto e rendeu imagens poderosas e emocionantes como a vencedora Lizzie Deignan (Trek–Segafredo) no tradicional chuveiro do velódromo de Roubaix.

Lizzie no histórico chuveiro de Roubaix (Twitter Paris-Roubaix)

Tivemos também a divulgação do percurso de oito etapas do Tour de France Femmes avéc Zwift. A largada será em Paris, no circuito da Champs-Élysées, no dia 24 de julho, mesmo dia em que ocorre a última etapa do Tour de France masculino.

Serão 1029 km, sendo quatro etapas planas, que podem terminar em sprint ou fuga. Duas etapas com terreno bastante acidentado, favorecendo puncheurs e por fim, duas etapas montanhosas com o grand-finale no Super Plance des Belles Filles.

Mais do que o percurso desafiador, o Tour de France Femmes (TdFF) também terá transmissão ao vivo das etapas. A Amaury Sport Organization (ASO), entidade organizadora do Tour de France (TDF) e agora também do TdFF, assinou um contrato com a Discovery Sports e a Eurovision Sport que garante transmissão ao vivo para toda Europa até 2025. Ainda não sabemos se algum veículo comprará os direitos de transmissão para o Brasil.

Crescimento do Women’s World Tour

O espaço que o Ciclismo Feminino vem ganhando na mídia e a certeza de transmissão de uma prova do calibre do TdFF foi suficiente para promover uma verdadeira corrida de times e patrocinadores para assegurar uma vaga no Women’s World Tour (WWT), categoria mais alta da UCI e que garante vaga para participação nas provas mais importantes.

Em 2022, teremos 14 times compondo a categoria mais alta do Ciclismo Feminino, com 5 equipes a mais do que 2021, são elas:

EF Education-Tibco-Silicon Valley Bank
Human Powered Health
Roland-Cogeas-Edelweiss Squad
Team Jumbo-Visma
Uno-X Pro Cycling Team
UAE Team
Canyon-SRAM Pro Cycling
FDJ Nouvelle-Aquitaine-Futuroscope
Liv Racing Xstra
Movistar Team
Team BikeExchange-Jayco
Team DSM
Team SD Worx
Trek-Segafredo

O interessante é que este fenômeno em busca de uma presença no feminino partiu muitas vezes do próprio patrocinador principal das equipes masculinas, que passaram a exigir que suas respectivas marcas também fossem vinculadas a investimento no esporte feminino.

Por exemplo, a EF Education foi atrás de investir em outra equipe, criando a parceria com a Tibcon-Sillicon Valley Bank, já que a sua equipe masculina comandada por Jonathan Vaughter, não tinha intenção de se aventurar no feminino.

Do ponto de vista comercial, faz sentido um patrocinador querer presença no feminino, especialmente quando como no caso da EF Education, uma escola de idiomas, metade do seu público alvo é composto de mulheres. Isto sem falar que é um investimento consideravelmente menor para um retorno crescente em exposição da marca.

Fora isso, não é necessário ser um gênio do marketing para perceber que não é bem visto no mundo de hoje posturas misóginas e machistas, que reforçam desigualdades impostas por séculos de barreiras criadas por preconceito.

Um exemplo disso foi a repercussão negativa de declaração polêmica de Patrick Lefevere, dono da Quick-Step, uma das equipes mais vitoriosas do pelotão masculino, que quando questionado sobre investimento no Ciclismo Feminino, falou ironicamente: “eu não sou o INSS”. No mesma entrevista aonde deu esta declaração, Lefevere também pontuou que não investia no Ciclismo Feminino por não haver no pelotão feminino muitas atletas Belgas com chances de boa colocação.

Deceuninck é a nova patrocinadora da Alpecin-Fenix/Plantur Pura (Divulgação)

Esta postura de Lefevere foi uma das razões alegadas pela Deceuninck, um dos principais patrocinadores da equipe de Lefevere, romper a parceria e passar a investir na Alpecin-Fenix, equipe que tem um time feminino.

Em resposta, a manobra seguinte de Lefevere foi anunciar que em 2022 daria seguimento a seu investimento na NXTG Racing, única equipe de ciclismo sub-23 do ciclismo feminino.

Calendário

Para além da inclusão do TdFF, o calendário de provas femininas de 2022 também cresceu. Serão 22 eventos, incluindo 10 provas por etapas.

Dentro das provas por etapas, destacam-se, obviamente, o TdFF e o Giro Donne, que retoma seu status no WWT após ser rebaixado por não ter transmissão das provas. Teremos também a Ladies Tour of Norway que passará a se chamar Battle of North e terá 6 etapas, ao invés de 4 e a Ceratiziti Challenge y La Vuelta, que vai passar de 4 para 5 etapas.

Em resumo, serão 71 dias de provas comparado a apenas 37 dias em 2021.

Vai ser interessante observar como as equipes vão administrar e distribuir suas equipes pelas provas, pois apesar da UCI ter aumentado o número máximo de atletas por equipe de 16 para 20 em 2022, aparentemente as equipes mantiveram o tradicional número de 14 atletas.

A verdade é que somos obrigados a reconhecer que o velho Pat Lefevere tem um ponto quando fala da falta de atletas de qualidade no pelotão (neste caso, não só da Bélgica). Atualmente, seria difícil encontrar 280 atletas com nível necessário para preencher as vagas nas 14 equipes do WWT.

Temos, inclusive, visto o fenômeno deste “boom” do ciclismo de estrada atrair de volta atletas que haviam optado por se dedicar a outras modalidades, tais como pista ou cyclocross.

A questão sobre a falta de talento no pelotão feminino é igual perguntar o que veio primeiro: o ovo ou a galinha? Será que o número relativamente menor de atletas talentosas deve-se às barreiras e falta de oportunidades? Ou será que há menos oportunidades pela falta de talentos?

Time feminino holandês nas Olimpíadas de Tóquio (Cor Vos)

A minha tendência é apostar sempre na primeira opção. Tome-se, por exemplo, Holanda e a Bélgica de Lefevere, países vizinhos, com desenvolvimento econômico equiparável, pool genético semelhante e igual afinidade pelo ciclismo (talvez até maior na Bélgica). Enquanto a Holanda, que incentiva de forma semelhante desenvolvimento de garotos e garotas no ciclismo, vem colhendo muitos frutos no ciclismo feminino, onde a Bélgica tem ficado para trás.

Ciclo Virtuoso

Por definição, ciclo virtuoso é uma complexa cadeia de eventos em que um evento positivo leva a outro e assim, sucessivamente, num processo continuo de melhoria.

Acredito que estamos no começo de um ciclo virtuoso no Ciclismo Feminino. Como qualquer desigualdade, foi necessária uma pitada de ação afirmativa para desencadear mudanças.

Em resposta à crescente pressão popular, a UCI agiu para implementar o WWT, criando padrões mínimos de profissionalização. Foi importante também a pressão de atletas, mídia e outros grupos de mulheres como o “Donnons des elles au vélo” para a ASO tirar do papel a idéia de um Tour de France para as mulheres.

Com maior profissionalização e maior exposição nos meios de comunicação, há mais patrocinadores e consequentemente, mais atletas com remuneração compatível para se dedicar profissionalmente ao ciclismo.

Isto tudo só pode impulsionar o esporte e por isso 2022 promete ser um ano maravilhoso para o ciclismo feminino.

Foto capa: Trek-Segrafredo 

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