Este é um texto sobre ciclismo, mas peço ao leitor que me perdoe, pois vou também precisar falar de futebol.

Desde já, aviso que não sei absolutamente nada de futebol. Sou São-Paulina por livre e espontânea pressão familiar. Até os meus seis anos de idade eu torcia pelo Guarani de Campinas porque achava lindo o uniforme verde. Isso mudou na primeira (e única) vez que o meu pai me levou a um estádio. 

O jogo era São Paulo x Guarani e o Tricolor Paulista ganhou de lavada (5×0 ou 6X1). Entre um saco de pipocas e um picolé, lá pelo terceiro ou quarto gol, fui convencida de que era o meu melhor interesse seguir a tradição familiar. 

Obviamente, o meu pai ficou feliz por ter preservado o orgulho masculino e a honra da família. Nunca pensei muito no assunto a não ser pela agradável memória afetiva, mas hoje me pergunto se o meu pai não perdeu a oportunidade de me ensinar um ponto maior.

Talvez ali fosse a oportunidade de me fazer perceber que não se vira a casaca, porque o time perde, porque as coisas dão errado, porque nunca vem o sonhado campeonato. Atualmente, não sei nomear sequer um jogador do meu time.

Minha paixão esportiva é o ciclismo. Poucas vezes vejo no ciclismo o mesmo fanatismo por equipes. Muitas mudanças de nome, patrocinador, uniformes. Difícil algum torcedor se apegar. Por outro lado, desde os primórdios, a paixão dos fãs se divide entre seus ciclistas prediletos. Gino Bartali ou Fausto Coppi? Raymond Poulidor ou Jacques Antequetil? Annemiek van Vleuten ou Anna van der Breggen? Wout van Aert ou Mathieu van der Poel?

A grosso modo, o gosto do público se divide entre dois arquétipos básicos:

  • o herói predestinado com DNA perfeitamente forjado, praticamente um semi-deus, protegido de todos infortúnios pelos deuses da vitória
  • o herói trágico, que é tão talentoso como o primeiro, mas que passa por todas dificuldades e provações, algumas vezes resultantes de suas próprias ações e outras provocadas pela fúria dos titãs, para, de vez em quando, num momento de grande inspiração, chegar a vitória. 

No caso de Mathieu van der Poel e Wout van Aert, podemos facilmente enquadrar os dois nestes arquétipos. 

Mathieu van der Poel x Wout van Aert

Van der Poel é claramente um herói predestinado. Filho e neto de grandes ciclistas, com o DNA forjado para vencer. Aliás, há até que se considerar se o histórico do avô pesou na formação de MVDP. Raymond Poulidor foi um excelente ciclista, mas ficou famoso por ser o eterno vice. Talvez seja reparação histórica, talvez seja uma reação kármica, se que é que a gente vem a este mundo para tentar fazer diferente de nossos antepassados. O fato é que Van der Poel é uma besta enjaulada, como diz meu colega Allan Almeida, quando parte para o ataque faz parecer fácil ganhar. 

Não me levem a mal, eu admiro demais este tipo de atleta. Da mesma forma como admiro as acrobacias, piruetas e toda sorte de movimentos incríveis que um bailarino produz. 

No entanto, o meu coração é do segundo arquétipo de herói, o trágico. E daí vem o meu amor declarado por Wout van Aert. Possivelmente, ele não é o melhor. A maior parte das vezes, é apenas o segundo melhor. A vitória não vem porque falta sorte, porque chove na hora errada ou até porque ele próprio comemora antes da hora. 

Pouco importa. 

Para mim, o que cativa é ver ele se entregando 110%, fazendo de tudo e mais um pouco para ser o primeiro. Na maioria das vezes, não dá certo. Ah, mas quando dá, meu amigo, é um obra de arte ou de “van Aert”.

Ver esse homem me lembra de uma das frases prediletas do grande Guimarães Rosa:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.”

Para quem é Aertista de alma, não importa que o nosso herói ganhe. Somos capazes de ficar alegres, no meio da vitória e ainda mais na derrota. O que a gente quer mesmo é ver se o nosso “herói” tem coragem.

A vida é assim para nós, mortais. Perdemos muito mais do que ganhamos. A lagoa seca, o vento muda, o DNA envelhece. Precisamos de ídolos que nos inspirem a continuar tentando…por coragem. 

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