Com a divulgação da rota do Le Tour de France Femmes avéc Zwift, a pequena bolha do ciclismo feminino voltou à discussão sobre qual seria a distância ideal para as provas femininas.

Algumas vozes importantes como Kathrine Bertine, que foi uma das precursoras na luta pela realização de um Tour de France feminino, defende a paridade total entre masculino e feminino.

Para outros, tais como o grupo do podcast Freewheling, as provas com longa distância são totalmente desnecessárias no ciclismo feminino. Segundo elas, o próprio pelotão feminino não quer provas longas. Isto porque provas longas mudariam toda dinâmica do ciclismo feminino, que é famosa por provas movimentadas, sem toda a politicagem do pelotão masculino que fica horas em banho-maria.

Agora o tema volta à tona com a divulgação do percurso do Mundial de 2022 em Wollongong.

E aí? O que pensamos sobre este tema?

Não há qualquer razão fisiológica que justifique a diferença de distâncias entre masculino e feminino. Pelo contrário, diversos trabalhos científicos apontam que nos esportes de endurance, quanto maior a distância, menor é a diferença na performance entre os sexos. Mais que isso, na prática já aconteceu em mais de um evento de ultra-ciclismo de uma mulher cruzar a linha de chegada em primeiro lugar geral.

Leah Goldstein e Fiona Kolbinger fizeram história ao vencer, respectivamente na RAAM e Trancontinental.

Além disso, é preciso voltar na história para lembrar do longo e tortuoso caminho que mulheres percorreram (e ainda percorrem) para buscar a paridade de gênero nos esportes. Quem não se lembra da imagem icônica do oficial de prova tentando retirar Kathrine Switzer da maratona de Boston em 1967? Segundo se acreditava na época, a prova era longa demais para a frágil natureza feminina.

Kathrine Switzer na Maratona de Boston em 1967 (Sports Illustrated e Boston Globe)

Em alguns casos, até a legislação vetava que mulheres praticassem alguns esportes. Por exemplo, um decreto que proibia a prática de futebol feminino no Brasil esteve vigente até 1983.

Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”

Decreto-Lei Nº 3.199, de 14 de Abril de 1941, do Ministério da Educação e Saúde, Conselho Nacional de Desportos, durante o governo de Getúlio Vargas


Considerando esse lado histórico, é sim importante que o esporte busque a igualdade. Por acaso, alguém imagina um Iron Man com distâncias diferentes para homens e mulheres?

No entanto, será que esta igualdade pode ser alcançado na marra ou por imposição da UCI? Para além das desigualdades em percurso e distância, tem que se considerar outras desigualdades entre o pelotão feminino e masculino.

Primeiro, só recentemente houve uma maior profissionalização no pelotão feminino e imposição de padrões para os times do Women’s World Tour (WWT), tais como a obrigatoriedade de um salário mínimo. Porém, na prática, essas mudanças não melhoraram a realidade da maioria das atletas e contribuíram para aumentar a disparidade entre times do WWT e equipes Continentais.

Pelotão feminino no Tour de Flanders 2021

Segundo uma pesquisa realizada pela Cyclist’s Alliance, o número de atletas profissionais “sem salário” aumentou em 2021. Outro dado desta pesquisa é que cerca de 39% das atletas tem um emprego além das carreiras ciclísticas. Em resumo, boa parte do pelotão é profissional só no nome.

Há também uma outra diferença importante entre os times do WWT e o seu equivalente masculino. Enquanto um time WT masculino tem 32 atletas em seu plantel, os times femininos contam apenas com 14 atletas. Ora, como exigir que atletas profissionais só no nome, que precisam de um segundo emprego para pagar as contas, consigam treinar e se preparar adequadamente para uma grande volta de 21 etapas, como é o caso do Tour de France?

Fora isso, como imaginar que os times conseguiriam gerenciar o desgaste físico das atletas envolvidas e a necessidade de cumprir um calendário? Nesse sentido, é mais realista a proposta atual do Tour de France Femmes de uma prova com 8 etapas.

Pelotão feminino no Tour de Flanders 2021

E o que o pelotão feminino quer?

Segundo a mídia especializada, muitas vozes no pelotão feminino não desejam provas mais longas. A justificativa disso seria a mudança na dinâmica movimentada das provas.

Na minha leitura, há na verdade um medo de mudanças de modo geral. Da mesma forma que quebrar tradições é um tabu no pelotão masculino, o pelotão feminino também resiste às mudanças. Há uma certa idealização de que o ciclismo feminino é uma jóia rara e única, que deve ser preservada a todo custo no formato atual.

Penso que esta visão é equivocada. O ciclismo feminino não pode ficar estagnado. O esporte deve sim buscar evoluir e testar novos formatos.

Conclusão

A igualdade de percurso e distância para o pelotão masculino e feminino é um assunto complexo. Considerando todo aspecto da luta histórica das mulheres por igualdade, acho importante o esporte caminhar no sentido da paridade, seja aumentando as distâncias no feminino, seja diminuindo no masculino.

Como ciclismo é um esporte de endurance, faz mais sentido para mim distâncias maiores para o feminino. O útero de ninguém vai explodir por pedalar o equivalente ao Tour de France ou completar um contra-relógio de 50 km.

No entanto, para que isso ocorra é necessário oferecer igualdade de condições entre os dois pelotões e apesar de todo progresso dos últimos anos, as diferenças ainda são gritantes.

Com igualdade de condições, podemos e devemos sim almejar por um Tour de France Femmes com 21 etapas ou provas clássicas com mais de 200 quilômetros.


Adriana Nogueira é médica infectologista, apaixonada por ciclismo e dizia que só conseguia escrever em threads do Twitter.

Fotos: Junior Simões

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