Duas corridas fenomenais e histórias inspiradoras foram o que pudemos assistir nesta madrugada nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. O autódromo de Fuji foi palco de belas disputas e roteiros tão envolventes quanto surpreendentes. Em ambas as categorias, vencedores que superaram obstáculos, acidentes, adversários poderosos e mostraram que para ser campeão é necessário sobretudo saber perder. É na relação com as derrotas que  nasce um campeão. O “privilégio de ter um coração partido” é alcançar a resiliência emocional que te faz avançar quando se esgotam as planilhas de treinamento. Quando já não há mais onde trabalhar o físico, o mental se sobressai. E isso vira inspiração. Mas chegaremos lá. Primeiro, vamos tratar do desenrolar das provas.

Annemiek, enfim o Ouro!

A prova feminina consistia de uma volta de 22km com largada e chegada no autódromo de Fuji. Duas duras subidas e um caminho sinuoso tornaram a prova mais difícil que o imaginado. As favoritas eram Chloe Dygert (USA), Anna Van der Breggen (HOL) e Annemiek Van Vleuten (HOL). Apenas 25 atletas classificaram-se para a disputa e Sarah Gigante (AUS) foi a primeira a estabelecer o melhor tempo, mas logo Ashley Moolman Pasio (ZAF) e Juliette Labous (FRA) bateram o tempo da Australiana.

A performance que surpreendeu a muitos foi de Amber Neben, (USA), de 46 anos que registrou o tempo de 31’26”, cerca de 42km/h de velocidade média. Neben é Bicampeã Mundial de Contrarrelógio e, aos 46 anos, mostrou ter ainda muita capacidade física. Os Estados Unidos que venceram as últimas 3 provas de Crono nas Olimpíadas com Kristin Armstrong (USA), conquistavam um bom resultado e ainda possuíam a principal favorita, Chloe Dygert (USA) que venceu o Mundial de Crono em 2019 e fazia o melhor tempo em Ímola 2020, quando se acidentou e abandonou a prova.

Pódio do Contrarrelógio Feminino

Entretanto, as últimas ciclistas começaram a largar e a realidade se mostrou diferente da expectativa. Dygert não conseguia manter um ritmo tão forte quanto se esperava dela, devido à lesão no joelho e sofreu a prova toda com dores. Ainda assim, fez um excelente tempo, ficando entre as 7 melhores. O favoritismo então ficava para Anna Van der Breggen (NED) atual Campeã Mundial de Estrada e Crono. Mas apesar da boa prova, foi o suficiente apenas para terminar com o Bronze, pois Marlen Reusser (SUI) terminou a prova 6 segundos mais rápida e ficou com a Prata.

Veloz e furiosa, quem voava baixo para o ouro era Annemiek Van Vleuten, (NED) que após o tombo na Rio 2016 enquanto encaminhava-se para a vitória, ainda teve que lidar com o peso do favoritismo e toda a confusão na prova de estrada onde Anna Kiesenhofer (AUT) venceu. Medalha de Prata na prova de Estrada de Tóquio, o Contrarrelógio era a última chance de conquistar o sonhado Ouro Olímpico. E assim, com uma média de quase 44km/h, Van Vleuten foi a única atleta a terminar a prova com menos de 31 minutos. Linha cruzada, vitória garantida, alma lavada. Foi uma longa estrada e Annemiek teve que driblar lesões, tombos e até a dificuldade de ter que lidar com companheiras de seleção cujos objetivos eram diferentes dos dela. Quis o destino que fosse na última chance, com suspense e dias depois de uma decepção enorme, a sonhada apoteose olímpica para uma das maiores ciclistas da história. Chapeau.

Annemiek van Vleuten (NED) campeã olímpica no Contrarrelógio em Tóquio 2020

Primoz Roglič, o Rocky Balboa da Eslovênia

“Não é sobre o quão forte você bate, mas sobre o quanto você aguenta apanhar e levantar-se novamente” diz o icônico personagem de Sylvester Stallone para o filho em um dos filmes da franquia. E talvez esta seja a melhor maneira de definir Primoz Roglič (SLO). O esloveno, ex-esquiador, que chegou tarde ao ciclismo, mas que, mesmo assim, alcançou um nível estelar. Com uma capacidade de resiliência e superação sem igual. Não importa quantas vezes você o veja com seus objetivos frustrados, ele sempre aprende algo com aquilo e volta mais forte, para dar a volta por cima.

Não acredita? Pois, vamos lá. Giro 2019: Roglič era o então favorito e marcava Vincenzo Nibali e Mikel Landa. Richard Carapaz atacou na Etapa 14 e não só venceu o dia, como tomou a Camisa Rosa para não perder mais. Decepção para o Esloveno. Até meses após, quando dominou a Vuelta a Espanha de ponta-a-ponta e conquistou sua primeira grande volta. No Tour 2020, controlou e dominou a corrida com mão de ferro até a famosa Crono em Planche des Belles Filles quando Pogačar chocou o mundo e virou o Tour de cabeça para baixo. Nova decepção e, outra vez, Primoz Roglič se recupera vencendo a Vuelta a España contra um valente e atacante Richard Carapaz. A revanche do que aconteceu no Giro do ano anterior.

Em 2021, uma abordagem diferente. O Esloveno correu algumas provas no início do ano, algumas Clássicas, mas preferiu ir direto do training camp pro Tour e apareceu em grande forma. Sempre marcando o compatriota e grande rival, até que sofre um tombo e é forçado a abandonar. Na prova de estrada das Olimpíadas fica para trás na escalada ao Mikuni Pass e não demonstra estar recuperado. Por isso, ninguém esperava pelo que fez hoje.

Pódio do Contrarrelógio Masculino, Tom Dumoulin (NED), Primoz Roglic (SLO) e Rohan Dennis (AUS)

A prova Masculina tinha exatamente o mesmo percurso que o Feminino, mas com duas voltas, ou seja, o dobro da distância. Os favoritos pelos resultados nesta temporada eram os Belgas Wout Van Aert (BEL) e Remco Evenepoel (BEL), junto do Campeão Mundial Filippo Ganna (ITA). Mas como a tendência atual é de cronos mais curtas, os recentes vencedores de ITT podem ter sofrido um pouco com a inexperiência em uma prova mais longa como esta que teve 44 quilômetros.

Entre os primeiros a largar, Hugo Houle (CAN) e Stefan de Bod (ZAF) fizeram bons tempos, com o primeiro sendo líder até Remco Evenepoel completar a prova. O jovem Belga teve um excelente desempenho e terminou a prova com 46km/h de velocidade média, tornando-se o novo líder, mas só até Rigoberto Uran (COL) destroná-lo. Uran terminou 2 segundos mais rápido que Remco e assumiu a liderança provisória. Os favoritos estavam na pista e a partir daí, os melhores tempos nas parciais começavam a cair. Filippo Ganna liderava na primeira parcial, seguido de perto por Roglič, Dumoulin (HOL), Van Aert e Rohan Dennis (AUS).

Mas o Italiano começou a perder terreno para os rivais Aert e Primoz que eram mais rápidos no segundo ponto de marcação. Dumoulin merece menção aqui, pois era outro visto com desconfiança depois da parada nas competições. Há muito não o víamos correr como nas épocas em que ganhou Giro e Mundial ou mesmo como no ano seguinte, quando foi Vice-Campeão no Tour, Giro e Mundial. Aquele brilho do Holandês voador estava meio apagado, porém hoje voltou com tudo. Dumoulin flutuava pela pista, por vezes cerca de 30 a 40 segundos mais rápido que o tempo do então líder Rigoberto Uran. Tom voava com maestria, ao que tudo indicava para melhorar a conquista do Rio, quando foi Prata. E chegou a ter a ilusão do Ouro ao liderar a prova. Por pouco tempo entretanto, pois se Dumoulin voava, Roglič foi como um foguete. Além da vantagem que Dumoulin tinha conquistado sobre Uran, o Esloveno conseguia ser cerca de 1 minuto mais veloz. E não demorou muito para cruzar a linha e tomar a liderança para si.

Ganna e Van Aert sofreram na segunda metade de prova, mas junto de Kung e Asgreen ainda foram mais velozes que Uran, separados por poucos segundos. O Bronze no entanto, ficou para o Australiano Rohan Dennis que apesar das subidas lhe dificultarem, administrou bem o esforço para ser o terceiro mais rápido do dia.

Campeão Olímpico de Contrarrelógio, o Esloveno Primoz Roglic

E a vitória coube ao fenomenal foguete da Eslovênia, que como Rocky Balboa, sempre se ergue novamente e desta vez, com toda a pompa que o primeiro Ouro Olímpico da história do seu País pode proporcionar. Um abraço no amigo Dumoulin, que também ficou feliz em estar de volta. Ainda não com a vitória, mas sem dúvida também em altíssimo nível.

Talvez o fio que una estes dois ciclistas com a Campeã Feminina seja mesmo essa capacidade de suportar a derrota, as adversidades, as críticas e a própria desilusão. É a fortaleza mental de continuar acreditando mesmo quando os outros decretam que já não é mais possível, já não é provável. É ter a determinação, mesmo que a vitória não venha, de continuar a tentar. Não é sobre o quanto bate. É sobre o quanto resiste. E o tanto que resiste, inspira adultos, certamente, e ainda mais crianças. Se você, já na fase adulta, gostaria de ser tão determinado e forte quanto Annemiek, Tom ou Primoz, imagine o efeito que eles tem nas crianças que os assistem. E que vão imitá-los!

Só digo que venham. O ciclismo e o mundo precisam de mais gente assim. De Tóquio para o futuro.

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