Não gosto de sprints. Fico nervoso com os tombos. Me dá um frio na espinha, a mesma gastura de morder um garfo vazio e puxar devagar, raspando nos dentes. O mesmo arrepio de arranhar as unhas num quadro-negro. Um pavor!

Assisto ao sprint batendo cabeça como um adolescente cabeludo num show de rock. A narração acelerada do último quilômetro e a confusão dos números no liquidificador das posições parecem guitarra dissonante ao fundo de uma bateria descompassada. Os ombros se batendo, rodas quase se tocando, embaladores saindo de lado, o espírito do tombo no ar, cheirando a pele ralada no asfalto.

Mas o Mark Cavendish gosta, e eu gosto dele. Ontem ele ganhou pela 35ª vez um sprint no Tour de France. Eu ainda nem acompanhava o Tour quando ele venceu a primeira vez, em 2008. Agora, 16 anos depois, com 39 anos e 5 filhos, ganhou mais uma. Nessa contagem, passou Eddy Marckx e é o ciclista com maior número de vitórias no Tour, todas no sprint.

Cav não ganhou numa fuga, não ganhou no contrarelógio, não ganhou escapado, não ganhou na montanha. Todas as 35 vitórias em sprints, batendo ombros e escorrendo pelos espaços.

Essa última, de ontem, foi um sprint de livro. Sem um trem de embalada clássico, seguiu a cartilha da busca por posição. Ele deslizou pelos vazios, escoando entre as rodas. Parece que aprendeu com o Bruce Lee a lição maior do mestre: seja água. Ele fluiu nas brechas, ganhando a cada pingo uma posição. Vendo e revendo o sprint de cima, ele navega pelas fendas, escapando dos ombros e dos tombos. Desvia das rodas, como água contornando rochas. E quando tentam pegá-lo, vaza.

O último movimento do sprint foi lindo. Já quando está quase na frente do grupo, cruza toda a pista tirando o vácuo de quem está atrás. Foi como se o arco da chegada começasse a se torcer, levando o lado direito da pista e baixando o lado esquerdo. E, como água, ele escoou pelo arco enquanto uma gotinhas caiam do meu olho.

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